Office in a Small City por Edward Hopper

Outro Hugo: sensível e teimoso

– Tudo bem, tudo bem. Não vamos falar nisso agora. O seu vício de metáforas e associações, como sempre. Você é incapaz de ver uma simples vassoura sem pensar que o tempo vai varrê-lo do mapa ou algo assim.
– E você acha pouco? Hein?

Judy Mackey. Adeus e oláAbro a porta para Mônica. Ela usa um vestido insinuante e sapatos de salto. Está muito bonita. Nem parece a mesma que me vem quando nos vimos pela primeira vez, no meio daquela gente toda: jaqueta velha, calças desbotadas… Quando os soldados chegaram, desencadeou-se uma confusão entre os que brandiam cartazes, o movimento dos que reagiam e dos que corriam, pondo-nos a todos desnorteados. Na pressa, eu a conduzi ao corredor estreito e salitroso dos fundos de uma galeria.

“Por aqui… Cuidado.”

Mais tarde, contarei tudo isso em detalhes, se não me esquecer.

Estava revendo uns rascunhos, quando ouvi que ela me chamava à porta.

entre amálgamas de anêmonas e algas

Começava assim um longo poema sobre o mar, sobre o amor e outras pequenas doenças. O verso brilhou de súbito, em meio à assimetria dos papéis, e eu senti uma inusitada felicidade ao redescobri-lo, redescobrir-me outro, entre uns últimos lampejos de uma fase que rapidamente definhava.

“Aonde vai assim, ameaçadora?”

Beijou-me.

“Estou vindo, não indo… Ai, me solta!”

“Vem cá, não são horas de ficar explicando coisas.”

“Me solta! Assim você me entorta as costas, ai!”

“Deixa de drama, mas que mulher agressiva, que isso! Vem aqui, vamos brincar um pouco…”

“Me solta, eu não quero brincar agora!”

“Vamos tirar esse vestidinho lindo, vem cá, deixa eu…”

“Me solta, tô falando sério! Vou gritar!”

Tive de soltá-la. Ela se aprumou de novo, alisando o vestido com dois gestos rápidos.

“Vocês homens pensam que nós somos feitas de borracha.”

“Nunca pensei isso.”

“Você entendeu. Agora, me escuta. Sabe aonde eu fui?”

“Não”, olhei-a de alto a baixo. “Nem desconfio. Você disse que estava vindo…”

“Falei com o homem. Achei que seria melhor impressionar um pouco.”

Dei-lhe as costas, voltei à escrivaninha.

“Já disse que não quero nada desse calhorda. Já disse, não disse?”

“Deixa de ser teimoso. Ele pode ajudar, é amigo do vice-governador. E a sua situação não está nada boa, nem preciso repetir isso.”

“Mônica, isso é…”

“Já sei o que você vai dizer. Ridículo por quê?”

Levantei-me, girei um pouco pelo quarto.

“É como se de repente eu pactuasse com tudo o que mais abomino. E me vendesse a eles. Você não imagina os tipos. Um dos diretores, para me influenciar, ainda inventou uma patranha sobre ser poeta também e ter guardado um livro de sonetos com a dama que o criou. Eles pensam que todos são menores mentais de cinco anos de idade ou donos de um perfeito bestunto sem remédio. Aliás, quando conhecemos homens assim, perdemos a esperança nas coisas, acho que até em nós mesmos. Esses homens…”

“Eu sei o que você pensa. Mas não adianta ser sonhador agora. Mais dia, menos dia, vão demitir você. E não só isso. Eles podem arruinar sua vida.”

Eu olhava para baixo. Pensava em uma saída.

“Ainda existem umas leis que tratam da demissão sem justa causa. Acho que não pensaram em mim quando as redigiram. Mas o fato é que estão lá, no papel.”

Dessa vez, foi ela quem deu uma volta pelo quarto, agitando as mãos às alturas, como suplicando a audiência de figuras celestiais.

“Papel! Essa sim. Esses são devorados rapidinho.”

“Eu sei.”

“Não vá me dizer que agora acredita na justiça.”

“Não, claro que não.”

“Por que não deixa ele ajudar? E salvar sua pele! Não faz diferença. Quem vai saber?”

Eu vou saber.”

Dei-lhe as costas por um momento, voltei-me em seguida.

“Mônica, escuta. Eu não tenho medo. Esse mundinho deles é tão frágil e patético como qualquer outro. A morte… O tempo nos vencerá a todos. O homem mais poderoso do mundo não tem mais do que um coração, um cérebro, um par de pulmões. Pâncreas. Que mais? Intestinos…”

“Essa não!”

“Importa agora levar às últimas consequências o que quer que seja o meu destino. E eles não têm poder sobre isso.”

Ela segurou meu queixo.

“Meu amigo: Dom Quixote morreu há muito tempo. Você precisa sobreviver. Trabalhar.”

“Eu vou trabalhar. Se é que me entende.”

“Do que está rindo agora?”

“Não estou rindo, exagerada. Só me deu vontade de te dar um tremendo beijo.”

“Não adianta mesmo falar com você.”

“Também não precisa ir pra tão longe, vem cá…”

“Lembra do que Nietzsche falou sobre a injustiça?”

“Eu não sou Nietzsche.”

“Não diga. Mas se imagina um filósofo, no fundo quer que eu acredite nisso, eu sei. É ou não é?”

“Ah, Mônica, você sabe o que eu penso disso tudo. Nietzsche criou o super-homem para compensar sua própria fragilidade. Aliás, quem diria! Esse que uma vez me pareceu um gigantesco intelecto não era senão outro infeliz com estranhos sonhos de glória. Talvez para compensar suas próprias limitações como filósofo. Sua impotência, quem sabe.”

“Não exagera. Falar isso do Nietzsche… E você? Não está também tentando se compensar?”

“Não sei. Não de todo. Ainda tenho você.”

Ela nem ligou. Continuou metralhando.

“Não bastasse aquela sua famosa gafe, quando afirmou, em meio a uma roda de mestres e intelectuais, que Quasímodo era o próprio Victor Hugo, sua identidade, imagina… Um jovem e belo poeta, espelhando-se num réprobo…”

“Claro. Claro que sim! Era assim que ele se sentia em seus vinte anos, sensível e rejeitado. Vendo Paris e o mundo por outro ângulo, não o das pessoas no solo, mas do alto de seu isolamento, de sua torre gótica. Assim é que ele se sentia, tenho certeza: um monstro. Essa minha interpretação, aliás…”

“Tudo bem, tudo bem. Não vamos falar nisso agora. O seu vício de metáforas e associações, como sempre. Você é incapaz de ver uma simples vassoura sem pensar que o tempo vai varrê-lo do mapa ou algo assim.”

“E você acha pouco? Hein?”

“Esquece isso, tá bem? Voltando ao assunto. Eles estão sempre em posição de vantagem. Não serão punidos nem responderão por coisa alguma. Agora, quanto a você, meu caro… Ah, você…”

Tornei a andar pelo quarto.

“É verdade. Aos fortes, tudo se perdoa.”

“Sim, mas você disse que odeia provérbios.”

“E esse é um dos que eu mais odeio. Vamos mudar de assunto, hein? O pior que pode acontecer é eu suicidar-me”, brinquei.

Ela continuou séria.

“O suicídio não é a solução para os seus problemas.”

“Como não?”, perguntei espantado.

“Não. Não é!”

“E por que não?”

“Porque não!”, disse ela irritada.

“Então… está bem”, disse eu, para que se acalmasse.

Ela ficou mais irritada.

“Não quero mais falar com você! Você é um estúpido!”

“Mônica, espera aí! Mônica!”

72. Outra Plath: algo das raras imagens de Sylvia – sequência

70. Antes que o dia em questão me encontrasse – anterior

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Imagem: Judy Mackey. Adeus e olá.

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