Office in a Small City por Edward Hopper

Fantasias da razão

A livraria parecia lotada, mas o que havia, na verdade, era pouco espaço, daí a impressão. Verônica sorria entre umas amigas suas. Um rapaz de minha mesma altura, barba e óculos redondos.
– Na sua opinião, por que o povo lê tão pouco?

– Porque os textos não são interessantes. Porque não somos interessantes.

Ludwig Sander. Jutlândia II.“Do que trata seu livro, afinal?”

“Trata do que só poderia tratar, do que, não sendo outra coisa além do que trata, só pode tratar. E é precisamente disso que trata.”

“É disso que trata então?”

“Naturalmente. Se tratasse de outra coisa, não trataria do que trata, e é justamente disso que trata.”

Microfones muito perto de minha boca causam a desagradável impressão de eu ser obrigado a falar. Mas tenho de admitir que, no mais, esses três que me cercam não estão sendo muito importunos. Não muito.

“É verdade que o senhor se sente frustrado?”

“O senhor tem medo da velhice?”

“Que lição o senhor pode afirmar, hoje, que aprendeu da vida?”

A livraria parecia lotada, mas o que havia, na verdade, era pouco espaço, daí a impressão. Uns que já estavam por acaso ali, bisbilhotando as prateleiras, ou mesmo tendo chegado depois, acabavam ficando um tempo mais, por curiosidade, devendo também ser contados nessa patética estatística, entre tantos outros dados que os editores, em conluio com a imprensa, manipulam. A dois corredores de mim, Verônica sorria entre umas amigas suas – até uma noite antes, ela apostava que elas não viriam, tendo-as incluído mentalmente na lista dos que quase certamente não apareceriam, mas elas apareceram sim. Meu braço direito dava sinais de dormência, cansado de rabiscar dedicatórias.

Um rapaz de minha mesma altura, barba e óculos redondos.

“Na sua opinião, por que o povo lê tão pouco?”

“Porque os textos não são interessantes. Porque não somos interessantes.”

Um homem de uns cinquenta anos, pouco mais jovem que eu, voz muito grave e altissonante.

“Qual é o perfil de seu leitor? Que faixa de idade, que tipo de pessoa, o senhor diria, adolescentes ou adultos, com que formação, quem o senhor acha que compõe, forma, configura o seu público leitor?”

“Não sei. Não sei mesmo.”

Uma jovem de cabelos curtos, nariz afilado, dentes pequenos, menos séria que seus colegas.

“O senhor disse uma vez que não lançaria mais livros, que não tornaria a aparecer em público. Está arrependido de ter voltado atrás?”

“Agora que eu vejo vocês, sim.”

Eles riram também. Era um plágio einsteiniano. No entanto, por amor à verdade e ainda que pareça hipócrita, sempre detestei parecer o engraçadinho, o espertinho, o inteligente, além de abominar, com uma careta secreta, os que apreciam brilhar com respostinhas assim, estúpidas. Acho que foi a proximidade da jovem jornalista que me descontraiu um pouco. Um pouco. Não muito.

“Este livro pode ser visto como um marco de transição entre a sua fase anterior e a próxima?”

“Próxima? Que próxima? Não sei. Não sei se haverá próxima. Não estou fazendo suspense, não é isso. Coisas assim não são muito lógicas, não são… importantes.”

“Mas há uma visível mudança, com relação às influências anteriores, pode-se dizer assim. Que autores o influenciam hoje?”

“Sabem, eu estou cansado de ler isto e aquilo. Estou cansado de ficar sorrindo e fingindo que sou inteligente. Não, não estou brincando. Mas se acham engraçado…”

“Mas, ainda sobre influências… O senhor as admite até então, até seu trabalho anterior, não?”

“Claro, sim, claro. Não há como negar isso. Sempre fui muito influenciável, talvez por isso não tenha nunca encontrado meu estilo próprio. Podem anotar, estou falando sério.”

“Sua prosa ainda lembra Cortázar.”

“Sempre pensei que lembrasse Salinger.”

“São um pouco diferentes. E o seu texto também difere deles.”

“Sim. Espero que sim.”

“Dizem que o legendário Arcádio Raposo, da extinta Editorial Arca, mencionou seu nome antes de morrer, trinta anos atrás, confessando-se arrependido por não ter investido em seu talento, que ele só teria compreendido tarde demais, e aconselhando a que se desse mais atenção ao seu trabalho. O que o senhor pensa disso?”, perguntou a moça de cabelos curtos.

“Eu nunca soube disso”, disse eu surpreso. E não estava mentindo. “Nunca soube, mesmo! Talento, ele disse? Nunca imaginei…”

Ela pareceu não acreditar.

“Falando nisso, o senhor concorda que A conspiração dos felizes tenha sido seu último trabalho significativo?”

“Claro que concordo.”

“Por isso o senhor teria deixado de ser reconhecido pelos livros seguintes, durante esses anos todos?”

“Ser reconhecido não depende de mim.”

“O senhor pensava em ser famoso um dia?”

“Quando jovem, sim. Mas, como não aconteceu, hoje compreendo que não havia motivos para isso.”

“Obrigado”, disse o jornalista mais velho. E retirou-se, acompanhado do câmera. “Sucesso com seu livro.”

A ausência do refletor que até então me cegava causou-me uma enorme sensação de alívio, como facilmente se pode imaginar.

“Suas posições políticas sempre foram ambíguas, isso sempre causou alguma indisposição entre seus colegas escritores, também entre alguns grupos ativistas, dos quais o senhor chegou a participar no passado. O senhor se incomoda com isso?”, perguntou o rapaz de barba.

“Hoje, não mais. Lamento que eles se incomodem comigo, se é que ainda se incomodam. Mas não acho que minhas posições e opiniões sejam ambíguas. O que ocorria, na época, é que elas não coincidiam com as deles.”

“Declaravam que o senhor não acreditava em mudanças.”

“Não vindas de pessoas como eles.”

“E que, apesar de tudo o que escrevia, nunca tomou partido ao lado dos socialistas.”

“Não mesmo. Porque não havia relação alguma entre o fato de eu criticar situações promovidas pelo poder com a adesão a uma causa cujas ideias nunca pude compreender perfeitamente. Eles acreditavam, como numa religião, que o mundo se tornaria socialista, inevitavelmente, nem que isso levasse mil anos. Mas não se pode adiar sonhos indefinidamente, sem considerar as forças da realidade, que se renovam. Há algo na natureza humana de sempre erigir templos, sistemas e correntes, entre as inúmeras ideias que nos ocorrem, baseadas em fantasias da razão. Mesmo dentro desses templos e sistemas, há uma acirrada disputa por poder, por hegemonia, movida por vaidade, inclusive.”

Ele pareceu estranhar – ou admirar – a expressão.

“Fantasias da razão, o senhor disse?”

“Disse.”

Até alguns anos atrás, em dúvida, eu ficaria hesitante, receoso de ter cometido uma gafe, preocupado em corrigi-la. Hoje não perco um minuto de sono por isso. Não por isso.

“O senhor parece mesmo se incomodar com a questão, quando se toca no assunto. Suas respostas são mais longas. Mais completas.”

“E pensar que eu só queria escrever contos…”

78. Por favor, esqueça essa bobagem – sequência

76. A arte é o cristal – o resto é a vida – anterior

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Imagem: Ludwig Sander. Jutlândia II.

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