Office in a Small City por Edward Hopper

Por favor, esqueça essa bobagem

– Tenho certeza de que já vi você antes.
– Pode ser. Sim. Pode ser. Não sei. Nunca se pode ter certeza.
Por um instante, como há muito não me acontecia, senti um pico de ansiedade, quase uma crise de desespero. Sabia que, se não tornasse a encontrá-la, teria uma longa noite de agonia e autopunição.

Leonid Pasternak. E Levina. 1916Então, pensei ter visto, passando pelo espaço estreito entre dois corredores, uma figura encapuzada, aparentando pressa, tanto que logo a perdi de vista, pode-se dizer em um piscar de olhos, entre uma palavra e outra.

“É verdade que o senhor tem mais de quarenta prêmios literários?”

Estranho traje para um lugar como esse, ainda que lá fora fizesse muito frio, nova baixa repentina de temperatura. Estava pensando nisso, quando notei arrastar-se um silêncio bem perto de mim. Que estranho – isso, que identifico como um silêncio. Arrastando-se, suave e preocupante. Furtivo, sinistro. E também agradável. Perto de mim.

“Como? Me desculpe, pode repetir?”

“É verdade que o senhor tem mais de quarenta prêmios em concursos literários?”

“Sim”, respondi com um ligeiro sorriso. “Se não fosse verdade, seria mentira.” Mesmo assim, a resposta soou indelicada.

E aqueles dois jovens jornalistas, discretos e inteligentes, certamente não mereciam estar ali para transcrever amostras de arrogância intelectual de um homem confuso, que nem mesmo sabia viver um momento de realização, uma pequena alegria, sem temperá-la com sarcasmos inúteis.

“Desde que comecei a escrever, participei de dezenas de concursos, fui classificado em alguns deles. Portanto, ao longo dessas tentativas todas, meus textos foram muito mais desclassificados do que premiados. Mesmo assim, nem tudo eram prêmios. Tratava-se de classificações e participações em antologias, não eram exatamente prêmios. Por vezes, aquelas hediondas menções honrosas. De verdade mesmo, não merecemos prêmios. Prêmio nenhum.”

Como adivinhando o que eu pensara anteriormente, a jornalista perguntou:

“Quais são suas expectativas com relação a este livro?”

Hesitei antes de responder, quase disse, na primeira: “Nenhuma.”. Mas tive tempo de atenuar minha grosseria. “É apenas um livro. Mais um livro. Que será em breve esquecido, como todos.”

Dessa vez, estava sendo realmente sincero. Era aquilo mesmo o que eu estava pensando, e a resposta, verdadeira que era, soou tão verdadeira como deveria parecer. E ser.

“As pessoas são muito importantes”, eu disse, quase sem querer, sem que me perguntassem. Eles agora pareciam mais atentos, justamente por causa disso. “As pessoas são o que mais conta, nós somos todos os que fazemos tudo. Os que lemos e escrevemos. Os que criam, os que absorvem. Nossa saúde e até nosso conhecimento de mundo dependem de tudo o que fizeram até agora, antes de nós e também em nosso tempo, por exemplo, a música…”

Contive-me, evitando assim outro discurso avulso, sem direcionamento, movido apenas pela paixão, coisa que aprendi a controlar com o tempo, agora auxiliado pelo gesto de virar o rosto enquanto passava a mão pelos cabelos, uma dissimulação mais que visível.

“O senhor dizia, sobre a música…”

“Não, não era bem isso. Não era bem isso. Não era nada disso. Alguma coisa mais?”

“Bem, eu acho que…”, murmurou o rapaz de barba, após consultar seu caderno de anotações. “Por enquanto, é só, vamos ficando por aqui. Obrigado pela atenção. Sucesso com seu livro.”

“Obrigado. Boa noite”, disse eu, apertando sua mão. “E boa sorte”, deixei escapar.

A jovem de cabelos curtos também acabava de fechar seu caderno e guardá-lo na bolsa. Àquela hora da noite, parecia cansada de trabalhar. Mas não dava sinais de se afastar dali, como se agora quisesse continuar conversando informalmente, eu consciente de que esse tipo de conversa era a que mais rendia assunto para suas matérias.

“Se quer saber”, eu lhe confessei por minha conta e antes que ela dissesse o mesmo, “não suporto que alguém me deseje sucesso. Que alguém deseje sucesso a um livro, a alguma coisa qualquer…”

“Por que não?”, ela rindo.

“Não sei, me parece uma grande tolice ver alguém lutando por isso, pessoas desejando isso umas às outras, sendo a vida provisória, como todas as coisas do mundo.”

“O senhor não está fazendo o mesmo?”, disse ela, enquanto aceitava uma taça de vinho que o garçom oferecia como num passo de dança.

“Não. Não estou. A vida, para mim, não se parece com isso. Com nada disso.”

“Vinho, senhor?”

“E então, sobre a divulgação do livro, está sendo bem trabalhada?”

“Não estou acompanhando, não sei dizer.”

“Está certo, o senhor parece ser mesmo honesto. Nem percebeu o truque.”

“O truque…”

“Sobre a divulgação do livro.”

“Não, não. Não percebi. Mas não me importo. Não me importo com truques. Olhe, se quer saber também, eu nunca fui inteligente como fingia ser, como esperavam que eu fosse”, contei sem necessidade. “Tinha muita dificuldade em aprender, desde menino, levava muito tempo para tudo, não me lembro de ter sido precoce sob nenhum ponto de vista, acredite. Demorei muito para aprender a falar, e meus pais temiam que eu sofresse de algum distúrbio mental. Muitas vezes, tive vergonha de admitir que todos os meus colegas de classe houvessem compreendido uma determinada explicação do professor, menos eu. Eu nem queria que os professores… Bem, eu, mas o que é que eu estou dizendo? Você não tem culpa, e nem era isso o que… o que…”

“Não, por favor, continue. Se não se importa. Prometo não publicar nada.”

Claro que eu não acreditava nisso. Mas não me importava mesmo.

“Muitas vezes, pensei que não pudesse continuar. Que não fosse continuar. Que não teria forças para continuar. Você já se sentiu assim?”

Ela concordou, com um gesto muito bonito de cabeça, talvez para que eu continuasse, apenas.

“Quando parei de estudar, fiquei me lembrando das dificuldades financeiras de meus pais, que não podiam comprar-me um livro sequer, porque viviam cobrindo dívidas. Mas minha condição social nunca me impediu de pensar. Nunca me impediu de querer entender. Quando revejo essas coisas todas, não sei ao certo o que aconteceu.”

“Sem dúvida, há algo de especial, de incomum na sua história. O que poderia ser? Nunca pensou nisso?”

“Sim. Não o bastante. Às vezes, me sinto como o velho de Hemingway: como se estivesse voltando de uma intensa aventura solitária, buscando o que a maioria dos homens não conhecia ou não era capaz de compreender, no fim terminando exausto e sozinho, sem ter a quem contar e, apesar disso… Mas veja só, que dramalhão, não creio que tenha chegado a tanto e… Você pode rir do que vou dizer.”

“Imagine, por que riria?”

“Mas nem sei dizer, objetivamente, o que estou fazendo aqui. Não saberia lhe dizer por que se imprimem livros como este, por que alguém os procura…”

“Não, não estou rindo do senhor, verdade. É que não esperava poder ouvir isso, não com essa exclusividade. Eu me sinto privilegiada. E acho que… hoje é o meu dia de sorte.”

Ela se dispunha a olhar-me de frente. Parecia estar seguindo as linhas de meu nariz e de meus olhos, como se os desenhasse dentro de si mesma, enquanto eu me detinha distraidamente em sua boca.

“Por favor, esqueça essa bobagem”, disse eu, tocando seu ombro e como afastando, com um gesto, qualquer sintoma de encantamento avulso. “Tomara que o seu dia de sorte seja muito mais do que isso, seja parecido com outra coisa qualquer.”

“Prometo não publicar”, ela repetiu. “Quero que confie em mim. Quero aprender alguma coisa esta noite.”

“Aprender alguma coisa, aprender alguma coisa comigo, mas isso é que é ter senso de humor, minha amiga.”

“Não, não se afaste de tudo o que digo. Agora mesmo, eu ia erguer um brinde, mas… percebi que isso não iria agradá-lo. Quero apenas merecer sua confiança.”

A essa altura, eu já me sentia cansado de mim mesmo, minado por alguma sorrateira crise de tédio. Não me animava a dizer uma só palavra mais, quando percebi que Verônica me chamava com um gesto.

“Me dê licença, preciso falar com um conhecido.”

“Vou estar por perto”, disse ela, num sinal discreto de simpatia. Ou apenas por mera cordialidade. Ou…

Olhando novamente, vi que Verônica continuava conversando com outras pessoas: o gesto não era para mim. Ela nem mesmo parecia ter me visto, de onde estava. Como já havia me desvencilhado da jornalista, resolvi andar sem rumo pelos corredores, aproveitando que ninguém mais queria ver-me nem incomodar-me com elogios, comentários e outras bobagens do gênero. Estava tão cansado que só então atinei com o tom de disponibilidade com que a jovem jornalista se dirigira a mim, como também eu não havia percebido, senão tarde demais, que aquele sorriso discreto, sutilmente formal e claramente frontal podia ocultar um furtivo aceno de continuidade, uma suave insinuação ou mesmo… Assustei-me quando a mão pequena e firme pegou-me o braço, fazendo que eu me voltasse num instante.

“Eu sei por que você está aqui. Preciso lhe falar. Sei como tudo começou.”

Era a garota encapuzada, agora de cabeça descoberta, cabelos lisos que um enfeite desviava para o ombro esquerdo, pescoço parcialmente emoldurado pelo capuz do casaco, que lhe caía agora dos ombros às costas, formando uma ligeira corcunda.

“Como? O que está dizendo?”

“Eu sei de tudo. Desde o seu primeiro poema. Desde o primeiro texto. Eu sei por que você está aqui. Preciso muito lhe falar.”

“Eu conheço você? Me parece que… Há muito tempo…”

“Meu nome é Verissa.”

“O quê? Não pode ser!”, disse eu surpreso, querendo crer que não sonhava.

“Sei que é um nome estranho. Mas, olhe, o que mais importa agora…”

“Não, não é isso. Não é isso. Me surpreende que eu a conheça de alguma maneira. Tenho certeza de que já vi você antes.”

“Pode ser. Sim. Pode ser. Não sei. Nunca se pode ter certeza.”

“Ah, aí está você!”, exclamou o gerente da livraria, que até então estivera circulando alegremente por toda parte. “Aí está você”, repetiu sem perceber, apresentando-me a um grupo de amigos que só agora chegava, vindos de algum lugar da noite e provavelmente indo a algum outro lugar da noite, tendo a parada na livraria como um referencial de intervalo da boêmia, que, a meu ver, eles nem precisariam ter incluído em sua jornada, para sua própria paz e para minha tranquilidade.

“Ah, o escritor…!”, falou um deles entusiasticamente, apertando-me a mão como se não fosse soltá-la tão cedo, mas soltando-a em seguida. Eu duvidava que ele soubesse meu nome.

“Boa noite”, respondi, mal disfarçando o cansaço.

“Oooi”, sorriu uma das mulheres, ligeiramente embriagada.

Notei que a menina do capuz havia desaparecido, como espantada por esse súbito encontro de vozes, ela que agora tinha nome. Olhei ao redor, decepcionado.

“Me diga, me diga uma coisa”, adiantou-se um deles, abraçando-me pelo ombro como se fôssemos dois velhos compadres. “Como é que você faz para escrever essas coisas todas, hein? De onde tira essas ideias, esses… personagens e esses… e essas…?”

“Como? Desculpe, eu não estou…”

“Como consegue terminar sempre da maneira como menos se espera?”, ele continuou, como se fosse muito difícil fazer uma coisa dessas e como se eu não tivesse direito a réplica.

“Estou escrevendo minhas memórias, sabe?”, avisou-me um dos boêmios. “Aí vou convidar o senhor para o lançamento.”

“Com certeza, estarei lá”, eu disse.

“Lá não”, corrigiu-me, “que vai ser aqui mesmo. Aqui mesmo!”

Enquanto eles se agitavam entre muitas risadas, tornei a correr os olhos rapidamente ao redor, buscando a misteriosa jovem do capuz. Por um instante, como há muito não me acontecia, senti um pico de ansiedade, quase uma crise de desespero. Sabia que, se não tornasse a encontrá-la, teria uma longa noite de agonia e autopunição.

“E então, quer nos acompanhar quando a gente sair daqui?”, convidou a namorada de um deles.

“Infelizmente não posso. Tenho que viajar logo pela manhã, bem cedo”, menti com facilidade e desejando que se fossem dali o mais rápido possível.

“Aaah…”, lamentou-se a que eu supunha embriagada, como se estivesse perdendo uma ótima oportunidade ou algo assim.

Pareciam todos do tipo festivo, provavelmente ansiavam por partir dali para outra noitada, entre outras porções de amigos, aos quais pudessem exibir-me como um velho conhecido, também como se aquilo de lançar um livro fosse motivo para comemorações e grandes porres.

Quando tudo terminou, Verônica contou-me que o número de pessoas havia superado as previsões. Eu nem estava pensando nisso. E também não acreditava que se houvesse previsto mais do que aquilo, não via motivos para tal. Observava os funcionários fechando gavetas, apagando umas luzes das estantes laterais, quando avistei a garota do capuz passando pela porta de vidro, saindo rapidamente. Eu não fazia ideia de onde ela teria se enfiado durante aqueles últimos minutos, a livraria não era tão grande assim, ela não poderia ter se escondido por tanto tempo. Mas essas minhas divagações não mais faziam sentido. Verissa, a garota do capuz, acabava de sumir de vista. Acabava de me escapar para sempre.

Verônica aproximou-se, duas sacolas de livros que dividiu comigo, enlaçou-me o braço.

“Vamos?”

Cheguei a pensar que valeria a pena contar tudo a ela e, assim, partir livremente no encalço de Verissa. Mas, ainda que o fizesse, não havia garantias de que pudesse encontrá-la entre as galerias, lá fora. Contar o quê a Verônica? Dizer o quê, que não parecesse ridiculamente estranho? Uma situação insensata e quase etérea, na qual ela dificilmente iria acreditar. A confusão teria sido maior.

79. Propenso a fragmentar-se – sequência

77. Fantasias da razão – anterior

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Imagem: Leonid Pasternak. E. Levina. 1916.

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