Office in a Small City por Edward Hopper

Depressa, o senhor não vê que eu estou fugindo?

Que ao menos me sirva de lição. Minha única ficha, único tempo, minha única vida.
Não posso parar agora.

Paul Klee. Cidade dos sonhos. 1921Tudo começou pela manhã, quando um dos pensionistas gritou-me, lá de baixo:

“Cartão!”

Era uma carta. Desci para pegá-la, voltei ao quarto. Rasguei o envelope, e meus olhos tremeram ao decodificar num relance as primeiras frases. Era tudo que eu mais temia. A partir disso, meu tempo tornava-se escasso, precioso. Corri à porta, ao topo da escada: o jornal do senhor Lineu Domingos não está mais lá. O desgraçado já deve ter acordado. Não tem o que fazer, e acorda cedo. Quem entende os aposentados? Um gato, que também não tinha o que fazer, fitava-me com grande indiferença. Voltei ao meu quarto, andei ao redor, em círculos, tocava e remexia objetos, como se pudesse comunicar-lhes parte de minha ansiedade, meus nervos subitamente à flor da pele. A única chance que eu tinha era rebater a fatídica mensagem por meio de meu próprio esforço em consolidar incessantes tentativas de interpretá-la. Sentei-me à escrivaninha, o papel em branco, mas, quando senti que irrompiam as primeiras erupções de minha obstinada verve, fui ceifado pelos borrões angustiantes e sucessivos que cuspiu a pena ordinária, zombando de meu desespero. Não encontrei outra. Parei à janela, com a mão no queixo. Então, saí correndo. Voei pelas escadas, por cima dos gatos, pela porta da frente, e acabei na portaria do edifício mais próximo, onde um velho escravo ouvia rádio com espantosa tranquilidade. Implorei que me emprestasse uma caneta, mas ele disse, com voz sonolenta, que não tinha nenhuma por perto, naturalmente tomando-me por algum maluco ocasional.

“Escute”, disse eu, tremendo. “O senhor me faça o favor de emprestar uma caneta, porque eu…”

“Eu estou mais pra lá do que pra cá”, respondeu ele, que também devia ser maluco. Foi o que respondeu.

“Mas o senhor deve ter aí uma caneta! Deve ter!”

“Eu estou mais pra lá do que pra cá”, ele repetiu. “Que adianta ter uma caneta?”

“Depressa, o senhor não vê que eu estou fugindo? Estou fugindo, certo, sem dúvida. O senhor nem queira saber. Eu…”

Fugi, voltei para casa. Peguei os papéis assim mesmo, juntei todas as páginas de que dispunha. O próximo passo, o próximo salto, a próxima disparada seria rumo à editora, para esclarecer tudo. Os pensionistas que por acaso circulavam pela sala estranharam minhas aparições e passagens alucinadas para cima e para baixo. Numa dessas desenfreadas correrias, topei de cara com o senhor Lineu Domingos, de maneira que não pude deixar de abraçá-lo de certa forma, desastradamente. Os papéis que eu trazia amarrotaram-se em meu peito, escapando pelas laterais, e ele apanhou um deles como por instinto ou susto, aquele que praticamente voejou à altura de seus olhos. Tomou-o para si e leu.

Senhor Lineu Domingos?… Fica furioso? O que é isso? Que negócio é esse?!”

“Nada, senhor… Domingos. É outra coisa. Não é o senhor. Garanto que não.”

Mas ele tomou-me outro papel das mãos, pegou a ler com os dentes cerrados.

Pele de peru Cabeça de ovo Jornal do senhor Domingos Fica furioso…”

“Não é o senhor, seu Domingos. O senhor está enganado.”

Fui agarrado pelos colarinhos: ele me sacudia com força, e os papéis caíam por todos os lados.

“Palhaço! Viado! Ninguém presta aqui dentro!”

“Isto se chama recriação, seu Domingos. Recriação! O senhor tem que acreditar em mim.”

“Recriação!”, ele urrou. “Aonde é que você vai com isso, cretino?”

Livrei-me dele com um empurrão, juntei, como pude, os papéis e disparei a correr.

“Até mais ver, seu Domingos.”

Deixei-o ali, furioso. Corri ao orelhão mais próximo, liguei para Mônica.

“Não sei mais o que fazer.”

“Por que você não viaja?”, disse ela. Levei um susto. Ela nunca me havia dito isso.

“Não tenho para onde ir.”

“Não há para onde ir.”

“Eu sei. Mas tenho que continuar. Preciso… Alô!”

A ligação caiu, era minha única ficha. Que ao menos me sirva de lição. Minha única ficha, único tempo, minha única vida. Não posso parar agora. A banca de jornais. De revistas. De jornais.

“O senhor me venda, por favor, o jornal de amanhã. Tenho pressa. Vamos, vamos, me dê o jornal de amanhã!”

“O jornal de amanhã”, disse o vendedor, como se lhe perguntassem coisas assim todos os dias, “só vai estar aqui amanhã.”

“Ah, o senhor não sabe nada sobre amanhã”, eu já resmungando em voz baixa, abatido e pondo-me novamente a caminho. Claro que eu estava lúcido. Claro que estava são. Só o que eu queria era o jornal do dia seguinte.

Na lateral do orelhão, um adesivo, colado ali por algum vândalo, avisava: Ele morreu por ti. Ele está vivo. Ele voltará. Fiquei mais deprimido. Recordei meu passado de escravidão e outros resquícios. Mas não estava calmo. Saí correndo pelas ruas, carregando o que eu havia escrito nem sabia para quem, para onde. Meu desespero, minha fuga, minha necessidade de salvar-me indicavam que a vida e a inteligência e a consciência pretendiam firmar-se sobre a Terra, independente do que eu pensasse, deixasse de pensar. Eu amassava as páginas avulsas contra o peito, com a sensação angustiante de não haver escrito nada de novo, nada que satisfizesse a mim mesmo, talvez quase nada – talvez nada. Não, a morte não está vencida. Ainda me falta morrer.

Após diversas e frustradas correrias, voltei à pensão. Os outros estavam na sala, dopados pela TV, e estranharam que eu voltasse, assim como estranharam que eu tivesse saído. Todos queriam saber por que eu nunca me despedia com um até-logo, um tudo-de-bom, um fique-com-Deus, como todo mundo. Sei que não passo de um medíocre jogador de xadrez. Mas eles não vivem sem televisão.

82. Sob a mira da arqueira real – sequência

80. A tentação de fraudar a própria história – anterior

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Imagem: Paul Klee. Cidade dos sonhos (detalhe superior). 1921.

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