Office in a Small City por Edward Hopper

Invasão (busca e apreensão) para nosso bem

Patrícia atreveu-se a perguntar: “Vocês são os famosos nazistas?”.
“Claro que não”, disse a mulher, mal-humorada. “Mas temos aliados por toda parte.”

Entraram sem muito alvoroço, eram apenas ordens, não tinham nada a dizer. Mesmo assim, não pude evitar surpreender-me: homens fortemente armados, fuzis de repetição, alguns mais ao fundo carregando pesados explosivos, uniformes de camuflagem na selva, equipamentos de sobrevivência em ambientes hostis. Por que tudo aquilo? Hostis eram eles. Todo aquele aparato parecia desnecessário, até ridículo, para qualquer ação contra civis inofensivos como nós.

Andar superior, envidraçado, de nossa mansão no campo. Vivemos cercados de verde, verdes claros e escuros, copas e arranjos de toda espécie. Somos habituados aos pássaros, aos jardins cultivados, durante décadas, pela família, da qual só restamos hoje eu e Patrícia, minha sobrinha adolescente. Nunca pensei que fôssemos acabar assim. Acuados. Impotentes. Nossa propriedade, violentada por estranhos. Subjugados por um poder que mal podíamos identificar e contra o qual não saberíamos reagir.

Entre os homens, uma mulher aparentemente muito nervosa, provavelmente a líder da comitiva, indicava, com mínimas palavras, os locais a serem revistados. Ela era magra e feia, talvez houvesse sofrido muito por sua feiura, assim tornando-se vingativa, quem sabe, porque, não importa o que se diga, todas as boas almas do mundo procuram a companhia dos belos e tentam educadamente afastar-se dos feios.

Sentados em duas cadeiras, uma de cada lado da escrivaninha, mãos atrás da nuca, Patrícia e eu observávamos tudo, em silêncio. De minha parte, pensava mesmo em não dizer nada, procurando irritá-los o menos possível. Os soldados reviraram tudo e não encontraram as joias mais valiosas, que estavam tão à vista, no grande armário do fundo, eu não entendia como, pois não pareciam tão incompetentes. Talvez fossem. As aparências de todos são sempre boas.

Patrícia atreveu-se a perguntar: “Vocês são os famosos nazistas?”.

“Claro que não”, disse a mulher, mal-humorada. “Mas temos aliados por toda parte.”

Voltei-me para minha sobrinha, com um mínimo movimento fisionômico que significava: não fale com eles, fique quieta, por favor.

A mulher aproximou-se. Deteve-se diante de nós.

“Lembrem-se de que estamos aqui em nome de Deus. E para o seu bem.”

Notei um crucifixo oscilando sobre seu peito, como se essa peça a acompanhasse em sua fala, vibrando conforme sua obstinada energia se manifestava.

Eu compreendia, subitamente: meu tio-avô fora um dos homens que haviam demonstrado serem os livros sagrados todos falsos. Havia provas de sua pesquisa, dados históricos e contundentes interpretações de aspectos mitológicos, associados a cada povo e sua época. (Por isso eles não viram as joias.) Sempre se repetiu que todo pioneirismo tem um preço. Mas a punição parecia estar chegando tarde demais, eu não sabia por quê. Nem podia culpar meu falecido parente, que apenas havia buscado e encontrado a verdade. Todos sabem que a evolução do conhecimento humano nunca pôde ser detida. Porém, para os crentes, qualquer descoberta é uma ameaça; toda ideia nova, preocupante e perigosa, principalmente algumas gerações atrás, quando se acreditava que um deus existia de verdade, não como um mito. E meu ancestral era parte dessa legião de transgressores, mesmo que eu não o admirasse por isso.

Sobre a escrivaninha que nos separava, entre papéis e objetos dispersos, minha sobrinha apontou um livro aberto, de poemas, no qual ela havia sublinhado algumas palavras e expressões como 7 de setembro e horizonte. Alguns versos abaixo, destacava-se a palavra lago. Sim, claro. Olhei pelo outro lado dos vidros. O lago fazia fronteira com o país vizinho. Se conseguíssemos atravessá-lo, de barco ou a nado, estaríamos a salvo. Era a independência, a perspectiva de fuga, o horizonte possível. Patrícia, uma esfinge, aguardava minha resposta codificada. Olhei firmemente para ela, dando a entender que havia compreendido sua mensagem. (Sei que posso fazer isso só com meus olhos. Não sei como. Mas posso. Ela entendeu perfeitamente.)

Mais vozes lá embaixo. De onde estávamos, podíamos ver que estavam arrombando a porta da pequena construção em forma de casa de bonecas, na verdade um baixo mausoléu remontando a quase um século.

“Estão abrindo a cripta da família”, anunciou Patrícia como se eu não estivesse vendo.

Sem um gesto, ficamos assistindo a mais esses metódicos procedimentos. Vimos como retiravam os corpos de nossos ancestrais e como os deixavam sobre a relva, sem nenhum critério. Fiquei atônito ao ver que todos os corpos estavam nus, a pele muito escurecida, como se houvessem sido carbonizados, porém apresentando ainda uma forma humana perfeitamente distinta.

“Como podem conservar-se em tão bom estado? Alguns morreram há mais de um século! Eles estão apenas escuros, como se a pele houvesse se tornado da cor da terra. Como é possível?”, eu quase perdia a voz, em minha agonia.

“Em nossa família, tanta coisa aconteceu…”, disse minha sobrinha, sem se espantar muito.

Alguém gritou lá embaixo, chamando outros, dizendo que era preciso ver aquilo. Haviam encontrado algo surpreendente dentro da cripta. Eu não fazia ideia do que fosse.

Aproveitando a atenção dos soldados, que correram às grandes laterais de vidro, Patrícia fez um novo sinal, apontando os olhos para os versos no livro e para o lago. Eu não sabia como responder. Mas ela deixou a cadeira num gesto rápido, saiu correndo porta afora, desaparecendo de minha visão num instante. Os tiros pareciam sem resultado. Ela provavelmente teria saltado ao andar térreo, quase voando por sobre as escadas. Na confusão, fiz o mesmo: levantei-me como se escoiceasse qualquer coisa, num pulo disparei atrás dela. Ouvi a explosão dos tiros, o ruído agressivo das armas de repetição, sinal de que não me acertavam. Tentei gritar por Patrícia, e nem atinava que emudecia, que a voz não me chegava, no instante em que bruscamente caía, com um golpe de

 Inconsistência dos retratos

Imagem: Willem de Kooning. Rainha de copas. 1946.

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