Office in a Small City por Edward Hopper

Lobo Antunes – O manual dos inquisidores

antonio lobo antunesAntónio Lobo Antunes, um dos mais renomados escritores portugueses, usa o múltiplo foco narrativo nesse seu romance, por vezes contado na voz do filho deserdado, outras vezes na voz da jovem camponesa ou da mulher rica divorciada, numa verdadeira orquestração de pequenos episódios e fluxos de consciência, fazendo do tempo uma matéria plástica que avança e retrocede admiravelmente. A narrativa abre com este magnífico parágrafo, contando da decadência completa da propriedade de uma família aristocrática atrelada ao salazarismo.

Logo em seguida, um dos trechos narrados pela jovem empregada da fazenda, que era sexualmente explorada pelo patrão.

E ao entrar no tribunal em Lisboa era na quinta que pensava. Não na quinta de agora com as estátuas do jardim quebradas, a piscina vazia, o capim que devorava os canis e destroçara os canteiros, a grande casa destelhada onde chovia no piano com o retrato autografado da rainha, na mesa de xadrez a que faltavam peças, nos rasgões da alcatifa e na cama de alumínio que armei na cozinha, encostada ao fogão, para um sono afligido toda a noite pelas gargalhadas dos corvos.

e nisto o piano começou a tocar. Começou a tocar não com o som de dantes, na época em que o menino João entalava o caderno das notas no tampo, movia o banco com o indicador para lhe subir a altura, dobrava e esticava os dedos, dobrava e esticava os dedos, dobrava e esticava os dedos de nariz no teto e a música alcançava o celeiro, alcançava a estrada de Palmela, se estávamos a jantar o sabor da sopa mudava e havia uma tristeza açucarada nas coisas como se temos gripe ou acontece chover à tarde em setembro, começou a tocar não com o som de dantes, que transtornava os cães e aumentava o brilho das laranjas à noite, mas numa cascata de ganidos, num sobressalto lodoso, num atropelo choco […]

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