Office in a Small City por Edward Hopper

O fato de eu ser ridículo

Um leque de agradáveis invencionices.
O sucesso, o dinheiro, a vida eterna e outras ficções.
Joan Miró. O cantor melancólico. 1955

Vanessa Maria Sales Arantes Pavão – ainda me lembro de seu nome completo – sempre foi uma garota inteligente, observadora. Bonita também. Filha de um médico renomado em nossa cidade, vinha de um meio social bem diferente do meu, de uma família na qual até mesmo certas superstições eram herdadas, integrando a continuidade da tradição. Mas calhou termos estudado certa vez na mesma classe do colégio, assim eu a conheci. Tínhamos pelo menos dezesseis anos.

Naquele tempo, o nível de ensino nas instituições estaduais atraía estudantes de diversas camadas. Os cofres públicos não haviam sido esgotados por nossos governantes mais hábeis, e alguma verba ainda era destinada à educação. Assim, era normal verem-se crianças descalças à hora da saída, outras sendo aguardadas por automóveis estrangeiros que admirávamos. Desde os primeiros anos de escola, todos nós éramos acostumados ao que parecia mais certo e natural: a escandalosa desigualdade entre as classes. Algo como se o mundo houvesse sido repartido assim, desde o início, por um deus disforme e sinistro cujo senso de justiça hoje nos parece duvidoso. Nossa consciência era subvertida de maneira a aceitar a naturalidade dessas diferenças, alheia ao fato de que a economia tem como base a matemática, não o destino.

Tudo era ensinado de uma determinada maneira, com um específico propósito por trás de cada palavra, de cada imagem, para que não e nunca nos incomodássemos com isso. Começando pelos embustes religiosos, a televisão nos fazendo esquecer ou acreditar que poderíamos ser um deles, desde que trabalhássemos com boa vontade, enfim, um leque de agradáveis invencionices, o sucesso, o dinheiro, a vida eterna e outras ficções. Alguns, mais cínicos, fazendo-se passar por sérios, reafirmavam a descontração do povo mais simples, a alegria e a liberdade das crianças brincando nas ruas, lembrando sempre que o dinheiro não podia comprar a felicidade ou a saúde. (Era de se perguntar, de imediato, por que diabos alguém então pretendia ser rico.) Claro, e repetiam com gravidade, pelo visto imunes a qualquer sentimento de culpa, a grande anedota descarada sobre um mundo, um país, no caso, das tão decantadas oportunidades iguais para todos.

Como todo jovem iludido pelas propostas de nossa cruel sociedade, um dia também eu acreditei que pudesse ser alguém na vida. Ser alguém na vida: eis, por fim, uma expressão detestável, digna de coléricas reações. Alguns a repetem até hoje, como se, em princípio, não fôssemos ninguém! Mas isso de eu acreditar foi no tempo em que era um estudante de ensino médio, e tinha lá meus tristes quinze ou dezesseis anos.

Ora, o que determina a condição da pobreza é o nascimento, nunca nada foi mais óbvio. O filho do monarca será fatalmente um príncipe. O filho de um camponês poderá, quando muito, com notáveis sorte e esforço, tornar-se um professor ou um faxineiro, nada muito fora de sua esfera e de seu alcance social. Mas aí vem prontamente a réplica. Claro, não faltará quem nos conteste a avaliação superficial e ingênua, citando casos de certos homens, hoje milionários influentes, que foram um dia filhos de bairros periféricos e famílias miseráveis, antes de se aperfeiçoarem na difícil arte de explorar de maneira adequada o trabalho alheio. Mas estes serão sempre uma exceção, um caso à parte, espermatozoides de cartilha, o que não altera nenhuma estatística, nem é preciso que se diga. Que se alcance o sucesso, ora, as regras do jogo permanecem as mesmas. Prega-se a igualdade de condições, porque ela não existe. Diga-se, será uma nação mais justa no futuro, pois não haverá quem o confira mais tarde – e nem será preciso. Esteja-se à vontade para o grande trabalho de conscientização dos mais ignorantes: todos sabem que isso não é possível. E podemos todos pensar e agir livremente, publicar inclusive nossa indignação e acaso a revolta, pois somos inofensivos.

A conspiração dos felizes

4. A vida segundo um antigo espanhol – sequência

2. Era ela, ela mesma – anterior

Guia de leitura

Imagem: Joan Miró. O cantor melancólico. 1955.

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