Office in a Small City por Edward Hopper

A vida segundo um antigo espanhol

A vida segundo o patrão de mamãe e segundo um antigo espanhol.
Eu era pouco mais que um menino, mas começava a desconfiar que os discursos mal correspondiam à realidade.

Chelsea James. Tanque. 2009

Certa vez, fomos visitados pelo patrão de mamãe, e o recebemos à mesa da cozinha, no momento o local mais apresentável da casa. Ele suspirava todo o tempo, por vezes emitindo certa expressão de desabafo, algo semelhante a um pupfa!, pausadamente, como ainda perfeitamente me lembro. Tinha um lenço para o suor da testa e do pescoço, enquanto deixava escapar elementos de seus discursos mais recorrentes, que enalteciam o valor do trabalho, como era de se esperar, e contavam de como ele havia conquistado sua fábrica, sua posição e uma esparsa coleção de terrenos baldios, que eram parte de seu ridículo patrimônio, “com muito sacrifício e muita luta”.

Eu era pouco mais que um menino, mas já começava a desconfiar que discursos desse tipo, tão arranjadinhos e sempre reafirmados, mal correspondiam à realidade. Assim, irrompi num de meus primeiros atrevimentos, ao perguntar-lhe:

“Mas a luta dos ricos é diferente da luta dos pobres, não é?”

Ele a princípio surpreendeu-se, porém sem abrir mão de certo senso de humor característico, enquanto me fitava com não sei que olhos.

“Não é?”, eu repeti, por causa de seu silêncio.

Mamãe implorou que eu me calasse, em meio a gestos disfarçados, púrpura de vergonha. O homem sorriu e fez-lhe um aceno que significava: “Deixe… Deixe o rapaz. Ele ainda mal conhece o mundo. Vai acabar adaptado às regras do jogo, sim, com certeza, um bom aluno como ele…”. Pousou a mão pesada em meu ombro esquelético e disse pausadamente: “A vida, meu amigo, já dizia um antigo espanhol, é sonho.”.

Fitou-me longa e amavelmente, como se com isso me houvesse passado a máxima filosofia que nos competisse, aos pobres. Sonho, não é? Sim, sem dúvida. Mas certamente sempre fora melhor sonhar nas salas de residências como a dele do que ao redor de mesas de cozinhas como a nossa. Não é?

A conspiração dos felizes

5. Seria o mínimo razoável – sequência

3. O fato de eu ser ridículo – anterior

Guia de leitura

Imagem: Chelsea James. Tanque. 2009.

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