Office in a Small City por Edward Hopper

Todos queriam ser o Sol

Na escola queria cada um ser o Sol, nunca o planeta.
E as ideias do lúcido polonês eram incompatíveis com meus pobres sofismas.

Joan Miró. Azul II. 1961.Não quero recordar as humilhações que amarguei em sua presença, inclusive, por causa de uma ou outra brincadeira de mau gosto que alguém sempre inventava. Eu era uma espécie de bobo da classe, um alvo certo de chacotas, pois sempre fui magro e feio, sem músculos que agradassem aos homens nem charme que atraísse as mulheres. Era também desastrado e sem qualidades, por isso ninguém me invejava nem odiava. E não há prova mais dolorosa de fracasso que não ser odiado por ninguém.

Na verdade, ninguém se importava comigo: não sentiam minha falta nem repudiavam minha presença. “Ah, você está aí?”, estranhava alguém que me esbarrasse por acaso. Todos os eventos do colégio, gincanas, discursos, encenações comemorativas, campeonatos esportivos, entre outros ainda mais repugnantes, ocorriam como se eu não estivesse ali. Costumava estar sempre sozinho, em alguma parte da multidão, e ninguém me notava, ninguém me chamava, ninguém me seguia. Até mesmo a multidão era formada por pequenos grupos: colegas ao lado um do outro, trocando gracejos ou dividindo as emoções do futebol de quadra. Mas eu sofria náuseas, e andava sempre sozinho. Foi assim que comecei a perceber que o mundo não precisava de nós, nem nós de nós mesmos, e que a vida não passava de um patético pesadelo.

Em contrapartida, quando era eu quem precisava falar com um deles, não raro tinha de chamá-lo mais de uma vez, como se minha voz não bastasse, não fosse alta e clara o bastante para alertar alguém de minha presença, tal como temos vivido naqueles típicos sonhos de ansiedade. Essa forma de descaso alheio está, sem dúvida, entre as coisas que mais detesto neste mundo. Por vezes, emitimos uma opinião formada, e o interlocutor se cala, volta-se a outras coisas dissimuladamente, como se tivesse mesmo algo a dizer, mas que não valeria a pena, e fica-se com a suspeita de que algo está errado. E de que ele sabe algo que não sabemos, que não podemos saber. E prefere guardar segredo, pois pode ainda usar esse algo em seu proveito. Ou crê que não possamos entendê-lo. Ou julga, enfim, que nós é que não valemos a pena e o preço de sermos cultivados.

Como se sabe, todo grupo de adolescentes precisa de alguém para ridicularizar em público. Isso é natural, vem de incontáveis gerações passadas e se repetirá ainda por séculos e séculos, como hoje compreendo. Mas, naquele tempo, era-me difícil aceitar a necessidade de tais escárnios. Sempre fui muito imaturo, demorava a perceber as coisas, mesmo as mais evidentes. E era a vítima virtual de tais prazeres. Não há que se estranhar, pois tinha de ser alguém. E era eu, por força do destino, de minha desagradável aparência, minha pessoa sem brilho e… Bem, falando em brilho, por essa época estávamos estudando Copérnico. E eu pensava: será que o mundo não é todo assim, com alguns sóis, homens brilhantes como o próprio Copérnico, e tantos planetas girando e girando? Mas, na escola, queria cada um ser o Sol, nunca o planeta. E as ideias do lúcido polonês eram incompatíveis com meus pobres sofismas.

A conspiração dos felizes

7. De memórias ultrajantes – sequência

5. Seria o mínimo razoável – anterior

Guia de leitura

Imagem: Joan Miró.  Azul II. 1961.

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