Office in a Small City por Edward Hopper

“De quem é isso?”

Meus personagens são seus próprios inimigos.
A realidade os aflige por serem eles o que são e não por alguma situação especial.

Carolyn Pyfrom. Agora vemos obscuramente através de um espelho
Ela então me perguntou se eu já tinha lido isto e aquilo, romances épicos sobre os ciclos da borracha, da cana-de-açúcar, do café, da urtiga… Não tinha entendido nada, coitada.

“Isso são livros de história”, expliquei. “Disfarçados, muitas vezes sem nenhuma nova visão do assunto. Literatura é outra coisa. Há dimensões menos gloriosas e nem por isso menos importantes. Em nosso tempo, nada mais surpreende. Mas a manipulação dos sempre mesmos elementos é que precisa ser revista. Desde que se publicavam aqueles volumes enfadonhos sobre os mosqueteiros e as guerras russas e napoleônicas, a arte escrita evoluiu muito. Descobriu-se o interior dos personagens, aliás, desde Shakespeare e bem antes de Freud, o que alterou substancialmente os conceitos literários. Só os norte-americanos não entenderam isso ainda. E continuam escrevendo romances policiais, de espionagem, terror…”

“Sei, sei.”

“Mas não importam as ações externas. No máximo, são um pano de fundo, um pretexto para que se desenvolva algo mais complexo.” A essa altura, eu me sentia incontrolável – eu, que havia jurado pôr travas na língua. “E é isso o que procuro, é isso o que venho tentando concretizar! Em geral, meus personagens são seus próprios inimigos. O mundo, a vida… A realidade os aflige por serem eles o que são e não por alguma situação especial, entende?”, continuei, meio engasgando com a saliva, atropelando-me em ansiedade, já quase fora de mim. “Amo escrever histórias em que nada acontece senão eles mesmos: suas aventuras interiores, seus piores monstros. É isso. O maior herói é o homem comum. A maior aventura, a que não acontece.”

Vanessa voltou-se, olhos oblíquos de súbita curiosidade.

“De quem é isso?”

“Ora! É meu.”

“Ahn…”, fez ela com algum desgosto. E tornou a mostrar-me o rosto meio de perfil.

Falei-lhe em desertos, se é possível!, desertos cotidianos por onde os artistas se deslocam sem serem notados. De um lado, provavelmente o esquerdo, o autor descendo de seu camelo e organizando a bagagem para trabalhar. De outro, o texto terminado, de longe parecido com o que desejava inicialmente seu articulador, com suas miragens. De outros, inúmeros lados, cada leitor com sua miopia.

Vanessa perguntou-me se eu tinha muitos livros. Essa gente sempre se interessa por esse tipo de coisa, a quantidade, o volume, o acervo… Ora, a vasta palavra biblioteca aplica-se com mínima propriedade à minha velha estante – duas prateleiras quase completas, guardando o que por fim restou de inúmeras tormentas e mudanças. No começo, eu emoldurava parágrafos enquanto os lia, sublinhava frases e manchava as páginas que mais me interessavam com círculos cruéis e impiedosas setas indicativas, registrando assim minha ansiedade, minha irresponsabilidade, meu desejo insano de conter as emoções, de parar o tempo. E as páginas acabavam ilustradas com garranchos e péssimos desenhos, minha irrefreável tendência humana, fadada ao erro e ao fracasso. Eu me acreditava diante de grandes segredos e tentava desentranhá-los por entre as palavras, como se também assim pudesse salvar-me. Arrependia-me por haver rasurado livros importantes, quero dizer, que na época eu considerava importantes. Comprava-os novamente, sofrendo, por outro lado, ao desembolsar parte de meus escassos recursos em livrarias sofisticadas. Isso durava pouco. Eram apenas livros. E eles me prendiam a novas mentiras. Por isso, logo passei a destruir também, sem qualquer remorso, as edições intactas. Eram os primeiros sinais de minha libertação, ao mesmo tempo em que adentrava outras crises. Ria ao lembrar-me de certo autor francês, ora, ele próprio pedia em seus livros que o leitor os atirasse ao lixo após a leitura, ele que tanto prezava sua biblioteca e que acabou rotulado com o Nobel. Eu já não suportava as hipocrisias. Via entrevistas nas quais os mestres enfatizavam aos jovens a necessidade da leitura, sim, eu me escondia para rir, pois já não acreditava senão naqueles que faziam da verdade as suas próprias vidas.

“Agora estou escrevendo uma novela”, disse eu animado. “Não deve ter mais do que três personagens, mas é o suficiente.”

“Sei.”

Por um instante, retomei um pensamento que frequentemente me incomoda: antes de morrer, tenho que destruir meus vergonhosos rascunhos. Enquanto os mantenho, pressinto que a morte ainda se demora, que eu a retardo de alguma maneira ou algo assim. Sempre me lembro disso diante de cada pessoa que por acaso revejo: eu as associo a compiladores de rascunhos, cada um de seu destino, e as mantenho vivas em minha memória. Cada um que me ocorre em recordação ou sonho. E cada um que morre. Eu os mantenho. Meus rascunhos são minha possibilidade de vida.

“Enquanto trabalho tais situações e seus desfechos, vou aos poucos avaliando as minhas próprias tendências com relação aos personagens e ao que pretendo mostrar, sabe? Concluí que o maior herói é mesmo o homem comum, no dia qualquer. E a maior aventura é a sua aventura, a que não acontece. Você compreende? Compreende? Há uma quantidade de caminhos nessas poucas palavras. E isso me fascina!”

“Sei…”

A conspiração dos felizes

17. Os poetas e escritores certamente morrerão envenenados – sequência

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Guia de leitura

Imagem: Carolyn Pyfrom.  Agora vemos obscuramente através de um espelho.

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