Office in a Small City por Edward Hopper

Os poetas e escritores certamente morrerão envenenados

De fato, por pouco não fui ao chão com cadeira, mesa e tudo.
Isso despencou sobre mim como uma bomba.

Black on Maroon 1959 by Mark Rothko 1903-1970
Então desatei a falar por culpa de minha solidão como se esses meus conceitos tão irrisórios tivessem alguma importância, falei-lhe que num mundo apocalíptico como o nosso e à sombra de Nostradamus num mundo que pode acabar no mesmo ano acho que ela nunca pensou nisso por causa de seu dinheiro não havia mais sentido nem mesmo em escrever sobre dramas pessoais que os autores do século dezenove já haviam feito isso com mestria e tudo o que se escreve é sempre a mesma coisa mas com outras palavras noutros idiomas os idiomas serão todos extintos um dia você sabe nenhuma língua dura mais do que trezentos anos mesmo assim tanta gente ainda escreve romances de quinhentas páginas acreditando que isso seja necessário e que alguém terá tempo e disposição para digerir tanto papel eu já sem fôlego mas que achava a coisa mais absurda do mundo escrever um romance em nosso tempo atribulado que ninguém aguentava mais que ninguém sabia mais sobre o que escrever que os autores se multiplicavam e gastavam suas vistas e perdiam seu tempo e escreviam escreviam escreviam estavam todos doentes congestionando as bibliotecas e as livrarias deviam ser pessoas sem amor como eu mas não lhe disse isso e os títulos proliferavam nos catálogos das editoras e enquanto isso nos confins da galáxia todo esse papel acumulado e acumulado que ninguém aguentava mais eu parecia sufocar enquanto podia ser tudo incinerado e talvez o mundo fosse mais feliz e as pessoas por que caminhar tanto e descobrir o vazio então que nossa passagem sobre a Terra que o mundo nunca precisou de literatura e o autor que provasse isso daria o golpe de misericórdia em toda essa que os autores lançando seus livros com coquetéis e gostavam de ver seus nomes impressos nas capas e discutiam literatura e saíam promovendo palestras nas escolas e organizavam conferências e suas fotos no jornal mas eu não porque era muito feio e tinha vergonha de minha imagem também não lhe disse isso que estavam todos loucos e que eu ainda tinha esperanças na humanidade apesar de todos os poetas que ninguém aguentava mais eu sabia que estava suando mas não a primavera era eu dizendo tudo isso de uma só vez como se uma torrente de lava vulcânica cobrisse tudo a palavra extinção não mencionei claro mas que Borges tinha razão e ninguém aguenta mais outra montanha mágica mas obras como a metamorfose o estrangeiro o apanhador que apesar de eu estar escrevendo uma novela que ninguém aguentava mais talvez isso fosse parte de minha imaturidade literária que no futuro uma ou duas frases aniquilariam para sempre toda a literatura do passado que a poesia de Pessoa e os ensaios de Paz que Joyce e a geração francesa de 50 inclusive revolucionaram a pontuação e a forma não se pode escrever mais nada eu observava os olhos arregalados bonitos ela a um passo de levantar-se dali e fugir mesmo assim eu não me continha que Beckett tentando ficar calado falou demais e quando falou pregou o silêncio o silêncio de que todo o universo é feito que os poetas e escritores certamente morrerão envenenados serpentes suicidas de seu próprio veneno e estavam todos doentes que Machado não tinha ido à escola e Edison não terminara o curso primário e as teorias heliocêntricas de Copérnico não se aplicariam a nenhum de nós porque todos querem ser o sol não os planetas e sempre que via essa gente vaidosa pensava em Copérnico mas que se começasse a falar dos cientistas certamente não pararia nunca mais pois prefiro os cientistas aos escritores seu menos veneno a torturar cobaias mas não todos há também torturadores de gente não não ninguém aguenta mais nunca mais escritores que ficam divagando e divagando sobre perguntas que sabem de antemão sem resposta ora que perguntas são essas ninguém aguenta mais estavam todos loucos eu também não querendo falar ao vento insistia em escrever cada palavra mesmo sabendo que os papéis os livros os idiomas apodrecem apodrecem as ideias até as mulheres bonitas personagens não resistirão e acabarão feias por terem sido bonitas nos romances que ninguém aguenta mais que as editoras preparam para o ano seguinte e os livreiros esperam pelo ano seguinte e os leitores esperam para o ano seguinte e o mundo pode acabar no ano seguinte mas é preciso parar Vanessa pode esbofetear-me com toda razão ela que também é bonita e vai apodrecer em minha novela que ninguém aguenta mais.

“Não! Ninguém! Não!”

“…”

“Ninguém!”

Quando finalmente tomei fôlego, ela me disse:

“Não compreendo”, olhando-me num misto de paciência e curiosidade. “Por que então você escreve?”

De fato, por pouco não fui ao chão com cadeira, mesa e tudo. Isso despencou sobre mim como uma bomba. Com uma simples pergunta, uma filisteia qualquer aniquilava toda e qualquer tentativa de justificativa mal rascunhada, o que o bancário Eliot não invejaria. (Bem, não era uma filisteia qualquer, era a minha Vanessa, vale lembrar.) De fato, de fato, não saberia responder. Mas sem dúvida porque eu era também doente e talvez buscasse com desespero minha própria cura. Ocorreu-me dizer-lhe apenas: “Ora, sei lá! Há motivo para alguma coisa neste mundo?”. Então veio-me a palavra mágica, que a tudo explica sem nada justificar, mas verdadeira, e eu a pronunciei em tom amável, já recuperado de minhas redundantes erupções literárias.

“Tesão.”

Vanessa afastou-se um centímetro, tornou a arregalar ligeiramente os olhos, e seu rosto avermelhou-se. Ela entendeu que eu lhe estivesse dirigindo tal palavra intencionalmente, o que não era verdade e não passava de um acidente, por culpa de minha distração.

A conspiração dos felizes

18. Mais um pouco da maldita conversa bem-educada – sequência

16. “De quem é isso?” – anterior

Guia de leitura

Imagem: Mark Rothko.  Preto sobre marrom. 1959.

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