Office in a Small City por Edward Hopper

Mais um pouco da maldita conversa bem-educada

E por que aqueles passeios a cavalo e férias na praia…? – tudo tão irreal para mim.
Ninguém sugeria que eu falasse de minha solidão, de meus estranhos sonhos…

John William Godward. A sacerdotisa. 1896.
“Desculpe, me desculpe. Não me entenda mal. Acho que me exaltei um pouco. Não foi de propósito.”

“Sei, sei.”

“É que há muito tempo eu não converso com alguém e… Talvez seja isso mesmo o que me faça escrever.”

“Sei”, disse ela tomando outro gole de sua bebida. “Você deve continuar. Você não pode parar.”

Eis o que sempre todos dizem com relação a qualquer coisa. (Imito essas falas, mentalmente, com uma caretinha enjoada: Você não pode parar. Você tem que continuar…) Ela o dissera de maneira tão viciosa, com um cacoete de entonação, que aquilo nada significava. Ou, melhor dizendo, significando sim a indisfarçável indiferença com que tratamos qualquer semelhante com um ideal desnecessário ao mundo objetivo, o mundo visível e prático por onde se movem os autodenominados… inteligentes. É claro que podemos parar. É claro que podemos não continuar. É claro que podemos, inclusive, entre mil outras coisas, nos suicidar. Mas Vanessa repetira o chavão como qualquer outro o faria, e diria o mesmo (tanto faz!) se eu lhe dissesse que pretendia montar uma ong para resgatar gatos de rua ou se eu lhe confessasse que pertencia a um grupo terrorista, que planejávamos crescer, aperfeiçoar nossos métodos, e atacar o palácio do governo. Talvez eu devesse testá-la com um blefe qualquer, só para ouvir, ao fim de tudo, o mesmo conselho. Mas isso seria ridículo. Não, não. Deixa essa gente.

“Acha mesmo que eu deva continuar?”, perguntei com seriedade, como se me referisse a seguir frequentando algum curso técnico ou ao hábito de fazer ginástica.

“Claro. Você não deve parar.”

“E até onde acha que eu iria, quero dizer, o que você acha que eu me tornaria no futuro?”

“No futuro? Você quer dizer…”

“Bem, quanto a ser escritor…”

“Ora”, disse ela, pensando, tentando encontrar alguma coisa. “Quem sabe, no futuro… Bom, um escritor não pode parar. Quem sabe você não vai parar na Academia, não é?”

Ela usou os verbos, na última frase, como se me mandasse a um asilo ou o que o valha, enfim, a algum outro lugar. Mas não me senti ofendido. Até admirei sua educação e amabilidade, depois de eu tê-la chateado tanto.

“Academia? Academia de Letras, você diz? Mas por quê? Você não acredita que eu possa vir a ser um grande contista?”

“Não, eu não disse isso.”

“E não acredita que eu seja um escritor de talento?”

“Não, não que…”, ela embaraçou-se.

“Mas talvez eu não seja mesmo”, disse eu olhando para baixo. “É só uma febre que tenho.”

Se fosse um escritor experiente e amadurecido, teria dito baixando os olhos, por exemplo. Com ninharias como essa, muita gente ainda julga a capacidade de um prosador. Mas a língua apodrece. Ninguém aguenta mais.

“Eu me lembro de que você sempre foi bom em redação”, falou ela como a desculpar-se.

“Talvez fosse.”

“Você se saía bem em redação, eu me lembro.”

“Mais ou menos…”

“Você era mesmo muito bom em redação.”

“É, acho que sim…”

“Aliás… você só era bom em redação.”

Era verdade. Eu não me interessava por coisa nenhuma e não gostava de estudar. Nem redação.

“Até que eu fazia milagres com aqueles temas”, suspirei. “Tinha de inventar tudo. Quase nada daquilo fazia parte de minha vida. Temas do tipo um dia na fazenda, por exemplo. Ora, eu nunca tinha ido a uma fazenda…”

Quase podia rever o tédio pedagógico de meus primeiros anos. Os professores de Gramática e Redação irritavam-me com seus temas, mas isso me serviu de alguma forma: enquanto os outros simplesmente contavam, eu era obrigado a criar, mentir ou acrescentar, simulando o verossímil. Por que não me deixavam escolher um tema? (Aliás, observe-se em tempo, agora que escrevo por minha conta e escolho meus temas, ninguém mais quer ler.) E por que aqueles passeios a cavalo e férias na praia e viagens de trem? – tudo tão irreal para mim. Ninguém nunca sugeria que eu falasse de minha solidão, de meus estranhos sonhos, minhas taras. De fato, era como se me perseguissem de propósito com temas sempre fora de minha realidade, alheios a mim. E castigavam-me com um amigo, um amor, minha primeira namorada

A conspiração dos felizes

19. O pequeno redator – sequência

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Guia de leitura

Imagem: John William Godward.  A sacerdotisa. 1896.

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