Office in a Small City por Edward Hopper

O homem importuno

A chegada de Copérnico seria a grande deixa para eu me retirar.
Mas o ódio que me atacava de repente cegava-me e prendia-me em mim mesmo.

René Magritte. A arte da conversação. 1950Ali estávamos, os três. Eu não podia acreditar. Que demônios do destino teriam arquitetado um encontro desses? Não, não. Blasfêmia. Foi Deus, só pode ter sido Deus. Algo assim bizarro e imprevisível só pode ser obra do Criador.

Copérnico sentou-se ao lado dela sem olhar para mim, como se eu não estivesse ali. Então compreendi a ansiedade de Vanessa: estivera o tempo todo esperando por ele. Ora, eu deveria ter imaginado alguma coisa assim, mas estava ébrio de sua presença, alienado. Claro que uma garota como ela não ficaria simplesmente ali, sozinha, num domingo de primavera. Era até notável que chegasse antes dele e se sentasse entre aquelas mesas quase desertas, desacompanhada. Essas pessoas resguardam-se sempre, todo o tempo, e nunca nos dizem o que andam fazendo ou o que há por trás de suas intenções, de suas atitudes e de suas vidas. Ora, como se todos já não soubessem disso. Mas assim são os conspiradores.

Atenuada minha pseudocrise de emoção, passei a considerá-los de meu prisma cético, repulsivo, quase podia fazer caretas se me distraísse.

“Então, demorei?”, disse ele sem ênfase. Ele nunca dizia nada com ênfase. Ele todo era uma figura sem ênfase. Andava sem ênfase, falava sem ênfase, vivia sem ênfase. E desde que eu havia chegado, cerca de meia hora atrás, ela já estava esperando.

“Não. Acabei de chegar”, sorriu Vanessa.

Perdoado mais uma vez. E não só isso. Ela agora lhe sorria com espontaneidade, solta e leve, quase irreconhecível. Que sorte a dele, chegar assim. Depois de eu a haver libertado, de haver libertado seu sorriso, servindo-me mais uma vez à humilhação na memória dela, deixando-a descontraída, alegre e como pronta para ele. Nesse momento, perguntei-me novamente o que diabos estava eu fazendo ali. A chegada de Copérnico seria a grande deixa para eu me retirar. Mas o ódio, que me atacava de repente, cegava-me, prendia-me em mim mesmo.

De alguma forma, reencontrá-los salientava a realidade de minha solidão, tornando-a mais pungente. Compreendi que as outras pessoas, em qualquer idade, nunca estavam sozinhas. Lembrei-me dos tempos de escola, quando, apesar de tudo, eu vivia cercado por muitas pessoas, misturava-me a elas, ouvia vozes, rumores, gargalhadas. Mesmo para alguém como eu, não aconteceu estar sempre sozinho, por tantos anos, e é verdade que cheguei a desfrutar com dissimulada alegria a amizade de um ou outro garoto de minha rua. Eram crianças como eu, de meu mesmo ambiente, mas desprendidas e sem nenhum misticismo. Coleguinhas de cartilhas, vizinhos, primos. Tive mais tarde amigos de bar, por algum tempo, não me esqueço, não posso negar isso. Foram noites felizes, pessoas sem as quais não se acreditaria possível viver. Agora, a lenta rotina da solidão. É estranho verificar como às vezes tudo acaba assim, depois de tanta gente.

“Comprou a passagem?”

“Comprei.”

“Para as sete?”

“Sete.”

“Saindo às sete, você deve chegar lá pelas onze, não é? Onze e meia…”

“Se Deus quiser.”

“Foi sorte ter conseguido às sete. Um horário muito concorrido.”

“É.”

“Conseguiu um bom lugar?”

“Graças a Deus.”

“Na janela?”

“Na janela e longe da roda.”

Eles continuaram conversando assim, como de propósito para provocar-me enjoos. Eu tinha a impressão de que estavam sempre em grupos, aliados entre si contra o resto do mundo, autênticos conspiradores de alguma seita intolerável, dessas que ninguém aguenta mais. A todo momento, ele falava em Deus, repetindo, como todos, o santo nome em vão. Ela também, sempre atenta aos costumes. O deus dos felizes, dos eleitos… – senti um remoto sintoma de minha diarreia.

“Mesmo?!”

“Graças a Deus.”

Oh, senhor dos privilegiados! Quando me aparecereis, talvez em sonho, a esclarecer-me tantas e tão perversas incoerências? – eu às vezes engendrava orações como essa, em meio às revelações que me ocorriam no cotidiano. Mas não saberia dizer por quem as desfiava nem ao que ou a quem as dirigia. Em princípio, eu contestaria um deus que os protegesse ainda mais, já não bastassem os mecanismos terrenos, quando tantos sofrem os horrores da miséria e morrem à míngua. Só de uma coisa eu ainda tinha certeza: meu ódio permanecia intocável.

A conspiração dos felizes

25. Inexpressivo, impassível, sem graça – sequência

23. Círculos sucessivos de imunidades – anterior

Guia de leitura

Imagem: René Magritte. A arte da conversação. 1950.

por

Publicado em

Comentários

Comentar