Office in a Small City por Edward Hopper

Inexpressivo, impassível, sem graça

Por não acreditar nas aparências mais do que devo, continuo um ingênuo como sempre.
Enquanto isso, o mundo todo prossegue funcionando assim, por trás das aparências.

Giorgio de Chirico. O objeto misterioso. 1973
Eu ainda absorvia a expressão tola de Copérnico enquanto orava, distraído como um demente, eu. Vendo-o em suas roupas novas, de fina confecção, tudo agradável e harmonioso, tive uma sensação opressiva de impotência. Eu andava meio debilitado por esses dias, alimentando-me mal, resistência baixa. Percebo quando estou assim vulnerável porque minhas gengivas sangram, minhas aftas afloram, e pequenas erupções nos cantos dos lábios constrangem-me as expressões faciais, com isso agravando minha feiura. A camiseta que eu estava usando tinha um minúsculo furo na altura do ombro, bem à vista, e isso me deprimiu. Sem lembrar a calça irremediavelmente puída, os tênis resistindo à pressão das joanetes. Quando me dei conta disso, cruzei os pés sob a mesa, involuntariamente, como se com isso pudesse esconder-me. Quando saí de casa, como sempre, ao ver-me no espelho, pensei: e daí?, ninguém me conhece mesmo. Agora eu estava trêmulo, envergonhado. Ora, mas por quê? Isto são apenas roupas, sapatos, coisas como outras quaisquer, isto não sou eu. Isto não sou eu!

“Você me prometeu seu telefone”, disse ela a Copérnico. Dessa vez, achou rápido o bloquinho. “Toma, escreve aqui.”

Quando Vanessa abriu a bolsa, pude ver num relance alguma coisa parecida com uma embalagem de preservativos. Ah, mas que estúpido eu sou! Ah, mas que pateta! Por não acreditar nas aparências mais do que devo, continuo um ingênuo como sempre. Enquanto isso, o mundo todo prossegue funcionando assim, por trás das aparências.

Copérnico rabiscou seu telefone com a caligrafia mais esculhambada do mundo. Mal se poderia dizer se um nove era um cinco, mas aquilo tudo por cima do número devia ser seu nome, pois começava com C. Isso sempre atiçou minha curiosidade: como é que de uns sujeitos bonitões como ele saía uma letra tão barbaramente garatujada, como se não fosse a deles? O que se passaria na região de seus cérebros que se ocupa da linguagem ou da coordenação motora ou sei lá do quê? Nesse momento, eu o observei mais uma vez, de alto a baixo. Que figuras impagáveis somos nós! (Aliás, eu que o diga.)

“Lembra dele?”, disse Vanessa apontando-me com a cabeça, de maneira bastante impessoal.

Não, estava na cara que ele não se lembrava.

“Lembro.”

Copérnico olhou para mim, cumprimentou-me com um sorrisinho insípido. Era espantoso. Se ela não me apontasse e não dissesse nada, ele poderia ter passado a tarde toda sem me perceber. Como é possível? Será intencional? O que se passa na cabeça de gente assim?

“Oi”, disse ele com a mesma expressão tola, de olhos vazios, como se olhasse através de mim.

E que máscara fantástica esse rosto dele! Inexpressivo, impassível, sem graça. Ninguém saberia dizer quando estava tranquilo ou deprimido. Pena que é um bobalhão. Se eu tivesse um rosto assim, inescrutável, usaria desse artifício para absorver cada vez mais das atitudes alheias. Mas, infelizmente, sou o tipo mais transparente do mundo, exceto por um cacoete que tenho, algo como um sorriso pregado à cara por alguns instantes. Além disso, costumo perder o controle de meu rosto com frequência – muitas vezes, nem percebo tais mudanças, mas elas se refletem na surpresa dos olhares dos outros. E, afinal, por que fazer isso, captar ridículas reações de meus semelhantes? Já não basta o incômodo das que assimilamos naturalmente? Não, não. Foda-se isso.

A conspiração dos felizes

26. Meu colega triste – sequência

24. O homem importuno – anterior

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Imagem: Giorgio de Chirico. O objeto misterioso. 1973.

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