Office in a Small City por Edward Hopper

Sonho 3402. Voos noturnos

Nossa casa, para efeitos noturnos, é um avião.
Voando sobre certas regiões da Europa, podemos ver sinais dos festins das bruxas.

Joan MIró. Estrela azul. 1927.Nossa casa, para efeitos mágicos, é um avião. À noite, depois de fecharmos tudo, a jovem nobre Dona Isaura de Bor e eu, depois de trancarmos a porta envernizada da sala, que separa de nós o jardim frontal de caminhos de pedra, e a última porta de tela que limita os fundos da casa, ela entende (a casa, não Isaura) que pode voar.

Ontem, pela grande janela da sala, vimos passar as ilhas Hébridas – eu as reconheci de imediato por causa da música de Mendelssohn, algo distante, mal encoberta pelo som de nossos poderosos ventiladores de teto, mas ainda assim identificável.

A jovem nobre, Dona Isaura de Bor, com seu ar de adolescente mestiça, morena de olhos carinhosos, senta-se ao meu colo, como costuma fazer.

“Quer um conhaque?”

“Olhe”, eu disse, apontando a paisagem que avistávamos pela grande vidraça lateral. “Parece que estamos sobrevoando a Rússia. Melhor uma vodca.”

Dona Isaura de Bor volta com os drinques. Hoje estamos sem sono. Podemos ver mais do mundo.

“E aquela, veja, é Leningrado. Como é bonita na escuridão clara das noites russas.”

“É linda…”, encanta-se Isaura. “Mas como sabe que não é Volgogrado?”

“Escute. Escute com atenção. Porque dá para ouvir um dos momentos mais emocionantes da sinfonia de Shostakovich.”

Nossa casa, para efeitos noturnos, é um avião. Voando baixo sobre certas regiões rurais da Europa, podemos ver sinais dos festins das bruxas, com pessoas verdadeiras, com verdadeiros desejos, participando de encontros nos arredores dos Alpes italianos ou no norte da Espanha, longe do alcance da Igreja, o que permitiu que sobrevivessem enquanto sobrevoávamos, isso por muito tempo, séculos e até milênios, enquanto matronas, fadas, feiticeiras e outras divindades benéficas e mortuárias, habitavam, invisíveis, o velho continente de influência céltica.

Eu e a jovem nobre, Dona Isaura de Bor, de pé junto à grande janela de vidro da sala, assistimos à passagem dos recortes dos vales, das terras cultivadas e dos recantos de florestas desgarrando-se da assimetria forçada que é a marca dos homens, nossos cabelos agitados pelo vento contínuo dos vastos ventiladores de teto.

Abraço Dona Isaura de Bor ao ombro, ela enlaça-me a cintura. É uma linda noite.

“Veja aquilo. São os sabás das bruxas. Alguns cavalos negros voando entre as nuvens. O brilho das fogueiras…”

“Que lindo…”, ela murmura. “Conseguiram sobreviver à fúria dos cristãos. E trouxeram suas fadas e duendes até nós.”

“E ouça, preste atenção. Está ouvindo? É a música maravilhosa de Goya.”

“Música de Goya?”, estranha Dona Isaura de Bor.

“Sim, a genial música de Goya. Compreende?”

Ela tem razão. Amanhece. Meus sonhos aterrissam. Os ventiladores de teto reduzem seu giro. Meus olhos se abrem, sem a escuridão clara de nossas noites.

Um de nós faz o café. Logo sairemos para trabalhar. Cada um leva uma chave. Beijo e despedida. Para sair, temos de atravessar, decididos, nosso jardim de caminhos de pedra.

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Imagem: Joan Miró. Estrela azul. 1927.

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