Office in a Small City por Edward Hopper

Com o tempo, comecei a mentir

Deve ser porque eu vivia sempre em busca de algo e acreditava no que me diziam.
Deve ser por causa da esperança.

Com o tempo, comecei a mentir“Se precisar, sei de umas histórias que dão um puta livro”, cacarejou Copérnico.

Detesto quando alguém me diz: por que você não escreve sobre a nossa cidade? Ou então: minha vida daria um livro enorme. Ou: rapaz, conheço um velho carreteiro que conta uma pá de histórias, por que não vai lá e não anota? Ou: sei de uma história tão triste que uma vez a contaram a um carroceiro, e o burro chorou. Detesto também o que Copérnico disse, é claro. Muitos ainda não compreendem o básico da literatura, por mais que ela se renove. E se repita.

“Obrigado”, eu disse.

Mas ele não me poupou de contar que havia lido J. M. Simmel há pouco tempo. Mais: Robbins, Wallace, West, Sheldon e aquele tal de Gatsby, mas acho que ele queria dizer Fitzgerald. Acrescentou que eram ótimos.

“É sempre bom ler os grandes autores, não é?”

Vanessa concordou. Eu também, mas não disse nada. Copérnico lendo, quem diria.

“Um escritor deve ler muito, não é?”, perguntou ainda, aparentemente sem pressa de deixar o assunto.

Respondi com um gesto ambíguo, não queria mentir outra vez. Pois leio pouco, gosto de poucos autores. Pouca coisa me entusiasma, e a maior parte do que me indicam só serve a cansar-me a vista e a testar minha paciência mundana. Antes, quando me indicavam um desses canastrões do gênero lista-dos-mais-vendidos, nacionais tanto quanto os estrangeiros, eu chegava a adquirir-lhes o título da moda, esforçava-me por ler o texto todo, até a última página, sem preconceitos, para no fim acabar, como sempre, me sentindo um imenso imbecil, de haver caído na armadilha. Muitas vezes me aconteceu isso. Deve ser porque eu vivia sempre em busca de algo e acreditava no que me diziam. Deve ser por causa da esperança. Também não faltava aquela pessoa a perguntar qual dos livros do famoso autor eu havia lido, para então sorrir e girar lentamente a cabeça, com pena de minha ignorância, avisando que esse livro aí não valia nada mesmo, que o bom era o tal outro dele, como se tais pessoas, elas próprias, tivessem grande interesse em ajudar nas vendas ou tirassem alguma porcentagem naquilo tudo, vá lá se entender. Com o tempo, comecei a mentir e a revezar os títulos do mesmo escritor, e sempre me diziam a mesma coisa: que eu havia lido o livro errado, que o outro sim é que era o quente, e daí por diante. Um bando de imbecis, uma burralhada por toda parte. Mas, aos poucos, e aos sustos, nos tornamos menos idiotas, é a vida. E esses ignorantes, leitores de noveletas baratas, historinhas místicas e autoajuda já não conseguiam me pegar mais. O que de fato me atrai são os raros autores que não nos limitam a uma única verdade, e nos abrem um leque, movem-nos à cumplicidade das pequenas aventuras, quando por vezes nos defrontamos com algo mais, ou maior, do que esperávamos inicialmente encontrar. E isso que se mostra, como se mostra, isso sim é belo. No fundo, penso que um escritor não deva ler muitos livros mesmo. Ele se contamina. Depois, não consegue escrever mais nada que não se pareça com o que outros já escreveram. Muitas vezes, um certo grau de ignorância pode inspirar inovações. Minha estante, aliás, abriga uns poucos volumes inclinados, pois costumo servir-me da Biblioteca Municipal e não posso gastar meu escasso dinheirinho com bobagens de qualquer tipo. O preço dos livros está um absurdo.

Copérnico ainda falava sobre isso com Vanessa, eu não entendia por quê. Ou não queria entender, provavelmente. Estávamos instalados ali, já com o embrião da rivalidade desenvolvendo-se surdamente, para não dizer quase ruidosamente, tentando de vez romper a fina membrana, a porta isolante, a quem quisesse reconhecê-lo. Aposto que qualquer um deles possui mais livros do que eu. São do tipo que fazem um cômodo de biblioteca e conservam, em suas casas, coleções completas do tipo Goethe, Hugo, Tolstói… Lembrei-me outra vez de minha diarreia. Não que me incomodem os autores. O problema é que essas estantes mais lhes servem pela aparência do que pelo conteúdo. Ora, nem é preciso repetir isso. Acabo de descobrir a América.

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Guia de leitura

Imagem: cena do curta Leite com café, de Mariana Andrade e Camila Hiraishi. 2009.

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