Office in a Small City por Edward Hopper

A Lanchonete Mangueira

A história é contada pelo vencedor. Não. Nem sempre.
Esta história será contada por mim.

Edward Hopper. Domingo (detalhe superior). 1926

A manchete era praticamente a mesma, quase a mesma de um ano atrás, pouco antes do choque econômico.

GOVERNO GARANTE QUE NÃO HAVERÁ CHOQUE

Segui pela galeria que me encurtava o caminho e refugiei-me no salãozinho sossegado, silencioso, da Lanchonete Mangueira. Geralmente almoço ali, mais pela necessidade do ambiente ameno do que atraído pelos salgados, sanduíches e porcarias que engulo. O único inconveniente são as crianças e os adultos que, a todo momento, vêm pedir esmolas. Mas, como isso se dá por toda parte, não chega a ser um mal exclusivo da Lanchonete Mangueira. Por via das dúvidas, é sempre aconselhável instalar-se nas últimas mesas ou junto ao balcão do fundo. De qualquer maneira, longe da porta.

Dizem que a história é contada pelo vencedor. Não. Nem sempre. Esta história será contada por mim. Pelo perdedor. Sobrevivente, pelo menos. Será que só isso faz de mim um vencedor: estar aqui? Pode ser. Ou não poderia contar nada. Somos todos privilegiados por isso. A chance de não termos sido abortados, de não termos nascido mortos, de termos sobrevivido ao primeiro ano de vida e ao segundo e ao terceiro, a todos os vírus e potenciais acidentes que por pouco… Bem, mas muito antes disso, o fato de nossos pais terem se encontrado de alguma maneira, carinhosa ou violentamente, é um fato muito considerável, sem dúvida, pois o importante, no fim, é o sexo, não como se chegou até ele. O sexo é a única maneira de se preservar a vida. Sim, grande novidade. Grande consolo.

No início, tive a impressão de que era uma lanchonete cara, de poucos fregueses, clientela selecionada. Descobri que os negócios iam mal, os fregueses eram mesmo escassos, só levianos como eu gastavam seu dinheiro em lanchonetes, que o dono, hoje um companheiro de prosa e desabafo, chegava a desligar o lento ventilador de teto para economizar energia e só o acionava novamente à chegada dos que frequentavam a lanchonete Mangueira.

“Pode deixar, não sinto calor.”

“Ah, é você? O que vai hoje?”

“Uma vitamina. Precisamos ser fortes.”

Só eu frequentava a lanchonete Mangueira. No mais, eram fregueses avulsos. Eu sentia uma vaga nostalgia de lugares pouco movimentados e, se fosse o caso, pagaria o dobro para estar ali.

“Então, como vão as coisas, rapaz?”

“Não sei. E o senhor?”

“Vou me aguentando, sabe como é. A situação, muito difícil. Mas o governo diz que as coisas devem melhorar (você viu o ministro na TV ontem?), que nós já chegamos no fundo do poço, sabe como é, pior não pode ser.”

O ministro na TV, não é? Dizendo que não pode ser pior. Grande consolo.

“Sempre há uma maneira de piorar as coisas, o governo sabe disso.”

“Pouco açúcar?”

“Sem açúcar. Obrigado.”

Agrada-me esquadrinhar com os olhos a ornamentação rebuscada, os relevos sinuosos da antiga caixa registradora, um esmerado elefante branco do tempo em que todos, não só os menos informados, tinham esperança. E justamente não se falava muito em esperança, pois ela não era necessária.

Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)

 4. A encantadora ovelha ruiva. Parte 1 (Outro livro de bruxas?) – sequência

2. Que sonhos teriam valido a pena? – anterior

Guia de leitura

Imagem: Edward Hopper. Domingo (detalhe superior). 1926.

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