Office in a Small City por Edward Hopper

Trágico ou apenas… menos cômico

Mórbido ou apenas… Bem, não importa o que seja.
Se pode ser esquecido em breve.

Jackson Pollock. Mural. 1943.

Ainda que tentasse evitar – o que nunca faço –, as ruas costumavam cercar-me de cenas avulsas, frases ouvidas por acaso, pessoas em movimento protagonizando os dias, todos os dias, antes que viessem outros, outros dias, outro tempo, outras gentes. Poucos dentre nós sabem que o dia é um globo que gira, um cilindro fechado, uma espada que cai, um dente que devora o que, de nossa parte, nunca mais será o mesmo. Descobrir o óbvio é sempre mais difícil. Eu assimilava a diversidade de tipos, suas roupas, cortes de cabelo, as religiões que os acalmavam, que os poupavam de desafiar o infinito e a razão da vida, as vozes e ruídos que produziam sob o sol, tão destoantes do silêncio onde o universo trama sua treva. Gente no meio da vida, a cada um seu passado, idioma e ideologia; a cada um seu futuro, o apodrecimento de tudo em que creem. Posso dizer mais, gosto de discorrer sobre isso. Mas considero muito inquietante e belo o que as palavras não dizem.

Gritos, ruídos. Um velho trôpego, vencido pelo álcool, barba e cabelos curtos, espetados, paletó negro e puído, como vestido para seu próprio funeral.

“Eu quero ir no caixão! Eu quero ir no caixão!”

Lançava-se à rua, erguendo um braço de punho fechado, como se ameaçasse alguém, e tropeçava de volta, causando transtornos ao trânsito.

“Faz dois dias que eu não como. Dois dias que eu não como! Eu quero ir no caixão!”

Um negro aleijado, vendedor de bilhetes, poucos dentes, assistia a tudo de seu cantinho. Os outros passavam sem dar atenção ao velho. Só o negro se divertia.

“Vai pra casa, velho. Olha que a polícia vem aí pra te prender. Ahahah…”

“Se a polícia me prender… Eu quero ir no caixão!”

O pequeno delinquente esbarrou-me ao sair da loja. O japonês correu até a porta, perdeu-o de vista, suspirou e soltou os braços. O rapaz da loja vizinha aproximou-se.

“Roubando de novo?”

“Não é ele”, disse o japonês, melancólico. “Não é ele. É o país.”

Pequenos incidentes. Cenas avulsas, como disse. Há o que seja trágico em meus testemunhos, é o que acrescenta o serviço de rua. Trágico, nem tanto. Mórbido ou apenas… Bem, não importa o que seja – se pode ser esquecido em breve.

O mulato muito magro, em restos de camisa, olhos de órbitas saltadas avançando sobre o rosto de zigomas, fora detido próximo ao banheiro público, atentado ao pudor, vestia um saco plástico de lixo em lugar das calças. Na verdade, esse jovem, praticamente mudo ou retardado, sofria constantes diarreias, em consequência de sua aids, e acabara de perder a última bermuda, que já era um trapo desfiado em vias de decomposição. A ambulância chegou logo, mas um dos enfermeiros disse aos policiais, após um diálogo lento e tedioso, que o hospital não dispunha de um leito sequer, e casos como aquele deveriam ser encaminhados a uma divisão especial da Secretaria da Saúde. A peruinha de linhas arrojadas, ostentando logotipos associados e um magnífico brasão do Estado, tomou o lugar da ambulância. Outro lento diálogo. A certa altura, fizeram uma piada sobre a tendência homossexual do governador (só o mulato não riu), despediram-se dos dois policiais, partiram. Os policiais, finalmente iluminados pelo bom senso, soltaram o paciente, disseram que sumisse de vista e mandaram-no aos diabos com um empurrão que arrematava a questão e o devolvia a seu destino. O saco de lixo quase se soltou, mas ele o amarrou à cintura, de modo a que não mais lhe escapasse, e seguiu cidade afora, livre e bem embrulhado.

O endereço certo, um suspiro de alívio por deixar as ruas, minutos que fossem. Toquei a campainha do interfone, seguiu-se um chiado de chuvisqueiro ao fundo de uma voz metálica e incompreensível.

“Rbom rdia…”, voz de velho.

“Bom dia. Preciso falar um minuto com o senhor.”

“Rde rque rse rtrata? Rrr…”

Dei-lhe o nome da firma. Meu nome. Função.

“Rque rnão rrr rnunca rquem rr rnada rnunca rrr…”

“Sua voz está horrível! Não entendo uma palavra. Essa droga de interfone está com defeito. Está horrível, não consigo entender nada do que o senhor diz. Preciso subir, é só um minuto. Faz parte do meu trabalho.”

O interfone silenciou, a porta de vidro abriu-se com um clique, e eu subi. Toquei a campainha do apartamento, ele atendeu.

“Rque rr rsenhor rrr rfirma rnão rtenho rr rnada rrr…”

O homem falava pela garganta, por uma cânula inserida ali, numa traqueostomia. A droga do interfone estava em ordem.

Quanta porcaria neste mundo! Eu tinha a impressão de que as pessoas, como o velho operado, viviam pela metade; que as coisas, de alguma maneira, estavam do avesso; que estavam todos doentes, qual fosse o caso: uns sem saúde, uns sem dinheiro, uns sem futuro, outros sem voz.

Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)

7. Cuidado: ele tem um guarda-chuva – sequência

5. Vida nova, sangue novo – anterior

Guia de leitura

Imagem: Jackson Pollock. Mural. 1943.

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