Office in a Small City por Edward Hopper

Entre fetiches e delírios, tudo muito secreto

Há algo que nos move às misteriosas variações do prazer primordial.
Nós, não sendo psicanalistas nem sexólogos, felizmente não os compreendemos. E podemos vivê-los
.

Pierre Bonnard. Mulher com meias pretas. 1900Ainda assim, tive a grata mas incômoda impressão, no fundo um daqueles nebulosos sinais espontâneos que já se insinuam prontos a convencer-nos de uma nova verdade (ou de uma velha verdade que até então nos recusávamos a aceitar), a impressão de que havia algo razoavelmente certo e justo no fato de uma mulher bonita como Vanessa ter sido filha de pessoas socialmente bem posicionadas, que tudo teria contribuído para sua formação, algo como se ela merecesse aquilo só por ser naturalmente bela, e como pudesse eu ver, num relance, a um canto de minhas visões, os cremes e os xampus, as frutas frescas de suas dietas e suas boas noites de sono, entre outros cuidados com a saúde e com a forma física, a menina de travessa florida e vestidinho curto, a adolescente menstruando em sua primeira vez, antes da adolescente que conheci, por fim essa mulher pronta, em seus vinte e alguns anos, feita à minha frente, privilégio que eu absorvia sem que nenhum dos seus ou dos que ainda hoje a cercavam jamais houvesse previsto. A flor de um jardim cultivado não para que um medíocre periférico como eu apreciasse – e eu apreciava. Mas vejam só, eu me dizia, eu aqui, quase concordando com isso tudo, corrompendo-me por tão pouco, vítima de uma tentação mundana como a dos poetas, uma recaída atávica, quero dizer, como quando amamos os rostos e corpos de beleza clássica e nos esquecemos de tudo o mais, quando fingimos não ver o que há por trás de tais produtos, quando acreditamos, como os desenhistas e os pintores, que estamos fazendo algo mais belo do que o mundo, e como se isso bastasse, ou como querem os mestres acadêmicos, em seus círculos de cegos e de míopes, ignorando todas as injustiças reais para que lhes sobrem os elogios recíprocos. Por pouco, também eu não me entrego. Mas não nos demoremos mais nisso.

Os rapazes da vizinhança desejavam morbidamente que eu e Copérnico desaparecêssemos num passe de mágica, que evaporássemos. Claro que Copérnico desejava o mesmo, não com relação a eles, mas com relação a mim. Quanto a mim, apreciaria imenso que todos eles se desfizessem miraculosamente numa fumacinha verde, embora isso em nada ajudasse a melhorar minhas chances com Vanessa. Mas quando eu engendrava alguma fantasia tendo-a como centro, perguntava-me também o que estariam pensando os outros ali, ao redor, e não podia crer que fôssemos muito diferentes, pois, entre fetiches e delírios, há algo que nos move às misteriosas variações do prazer primordial. Nós, não sendo psicanalistas nem sexólogos, felizmente não os compreendemos. E podemos vivê-los.

A conspiração dos felizes

37. Restos de meu pequeno mundo perdido – sequência

35. Controlados pelo costume – anterior

Guia de leitura

Imagem: Pierre Bonnard. Mulher com meias pretas. 1900.

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