Office in a Small City por Edward Hopper

O que Copérnico não imaginava: todos queriam ser o Sol

O demônio deve ser isto, o sem fim da contestação.
Graças a ele, existem a arte e a ciência.

Ivan Serpa. Formas. 1951.Dizem que um homem maduro compreende as pessoas a ponto de não mais julgá-las ou criticá-las. Mas que me importa ser um homem maduro? Nunca foi esse o meu objetivo. A voz de Copérnico e a submissão de Vanessa, a conspiração da qual ambos tomavam parte tornavam a despertar-me repentes irritadiços. Claro, eu lhes dirigia farpas em silêncio, que uns retardados como vocês não podem compreender minha ansiedade frente à existência, pois acreditam placidamente que Deus nos conduz como bonecos de fios ou concedendo-nos maldosamente aquela incômoda liberdade prevista pelo destino e pelas profecias, o que é o mesmo não tivéssemos liberdade alguma. Cada vez que Copérnico repetia um desses clichês incluindo Deus, eu tinha vontade de dar trela à minha eloquência blasfema, pois esta é uma característica sem solução de minha personalidade: enquanto todos falam em Deus, eu acredito no vazio. Se um dia todos se converterem ao vazio, é provável que eu saia em busca de um deus. O demônio deve ser isto, o sem fim da contestação. Graças a ele, existem a arte e a ciência. E o Inferno é não haver conclusões, assim como o Paraíso. Sei que, de certa maneira, vá lá seja por bem ou por mal, cresci e aprendi algo, enfim, como dizem, amadureci. Meu ódio, assim mesmo, permanece um sentimento intacto.

Logo que Copérnico mencionou o fato de ter se formado há pouco, lembrei-me de Edison, (o verdadeiro Edison, o Thomas da lâmpada, não o irmão dele), que não pudera concluir os estudos, e senti um arrepio de ironia. Vislumbrava o fascínio e a curiosidade que moviam tais homens a espantosas descobertas, não sendo uma vida suficiente para conter sua sede de respostas, e tanto mais que o velho Copérnico gostaria de saber, pois este nosso Copérnico pode perfeitamente viver por noventa e nove anos sem nunca sentir-se intrigado, por exemplo, com o fato de o planeta Vênus descrever seu giro em sentido contrário ao de todos os seus colegas do mesmo sistema, o que até hoje, apesar dos esforços e da corrida pelo reconhecimento e pela fama, nenhum teórico explicou de maneira convincente. Talvez nosso colega Copérnico não se pergunte nunca por que giro eu em sentido contrário, mas isso já seria esperar demais dele, tanto em complexidade quanto em interesse por mim. Pensei até em perguntar-lhe, de propósito, algo referente a sua área de atuação profissional só para confundi-lo, mas entendi que não valia a pena. Isso não alteraria nada. Vanessa sabia muito bem que Copérnico era um ignorante sem remédio, e ele seria automaticamente perdoado. Também era inevitável que seu nome me remetesse ao Copérnico autêntico, o que mudou os rumos do pensamento humano, com seu heliocentrismo. Dirigia-me a ele, em minha imaginação: “Muito bem, senhor Copérnico. O senhor acreditou nessa história de que os planetas giram em torno do Sol, mas se esqueceu de que só existem sóis e não levou em conta a conspiração. Na literatura, o que o senhor descobriu não serve para nada, lamento muito.”.

Quanto ao Copérnico meu contemporâneo, eu adivinhava que ele passaria pela vida sempre com aquele sorrisinho insípido, e haveria de morrer tal qual nascera, eu diria um homem sem alma. De qualquer forma, gostaria de acreditar na transformação das pessoas, mas não sei até que ponto. Também receio que eu mesmo não me transforme e continue desejando que as pessoas sejam de uma certa maneira, à mercê de minhas preferências, embora sempre houvesse desprezado com igual aborrecimento os arruaceiros e os devotos. Por outro lado, há fases e idades tão pungentes que nos conduzem a isso. E quando alguém se defronta com suas próprias limitações, dificilmente deixará de se alterar. Pode acontecer a qualquer um. Até aos patifes. Há certa mudança mesmo em homens mesquinhos e fúteis, que dedicam toda a vida em função de bens materiais e posições, sejam esses homens administradores, oportunistas, políticos ou algum agiota menos famoso. Quando passam dos cinquenta e compreendem a proximidade da morte, dedicam-se a observar a natureza, dispensam mais atenção à juventude de suas amantes, passeiam com os netos, mostrando-lhes flores, árvores e outras coisas entediantes. Alguns se desesperam e entram em pânico: estes não aceitam que a vida seja uma cartada sem retorno, e então passam a acreditar em outras vidas, mesmo onde não puderem mais trapacear, simplesmente por imaginarem necessária sua eternidade individual. Todos são assim, eternos e necessários. Menos eu. Eu não. Eu sempre soube da morte.

A conspiração dos felizes

40. Eu ali, de uma maneira infernal – sequência

38. Chegadas partidas – anterior

Guia de leitura

Imagem: Ivan Serpa. Formas. 1951.

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