Office in a Small City por Edward Hopper

Perigosas canções inofensivas

A canção traz uma incômoda nostalgia de algo que não alcançamos.
Uma sensação de derrota à luz do dia.

Raphaële Colombi. Folhas 5 (detalhe inferior).Qual era a contrapartida disso? Os que berravam canções estridentes e ruidosas como a servir de hino à sua revolta, de exorcismo a seus demônios? Também de nada serviria se Copérnico fosse um entusiasta dos metaleiros e de suas bandas irreverentes, pois os empresários desses supostos revolucionários são outros tantos capitalistas bem nutridos, os conservadores da pior espécie, que logicamente nunca entram em cena com os seus melhores produtos. Claro, quem não sabe disso? E pertencem à mesma linha dos grandes canalhas que produzem filmes sensíveis, supostamente humanos, próprios a nos fazer sair comovidos do cinema, que é como eles continuam enchendo potes de ouro para financiar suas orgias sem fim, em Hollywood ou em qualquer outra porcaria de lugar. Tanto quanto os melhores livros sobre como se fazer uma revolução, o inconformismo, a revolta, a liberdade e a esperança são produtos à venda. Como para ilustrar (melhor se diria sonorizar), o que vinha eu remoendo há pouco, a rádio lançou ao ar uma das canções-libelo de duas décadas atrás, censurada por tanto tempo, hoje repetida e assoviada livremente na voz dos mais jovens. Hoje, ressoando entre o doce rumor das árvores e as amenidades que mais uma vez os acalentavam, que a mim amargamente enfadavam, uma das mais conhecidas canções do tempo em que nosso povo vivia ainda sob outro tipo de tirania, não a de hoje, a do poder econômico absoluto, mas aquela chamada pelos historiadores de ditadura militar, no fundo a mesma coisa, com a diferença de que apenas se mostravam não os usurpadores o seu próprio rosto, mas os cães dos donos da casa. A canção é hoje muito executada e apreciada, e traz uma incômoda nostalgia de algo que não alcançamos. Uma sensação de derrota à luz do dia. Ondulações de mais um pesadelo a céu aberto, após tantos torturados e assassinados e desaparecidos, no meio de sua pátria. Hoje se podem fazer livros e filmes sobre o período do regime militar. Podem-se escarafunchar detalhes de nossa história recente e revelar escândalos financeiros do passado, sempre do passado – todos esses escrevendo livros, monografias e teses mundo afora, especialistas-prêmio-nobel, economistas e analistas financeiros, sociólogos e filósofos e cientistas políticos, cineastas engajados e poetas ativistas, porque não podem mudar o curso das coisas, porque seus livros não chegarão nunca ao povo que mais necessita de justiça, nem poderão mudar-lhe o pensamento, em suma, porque são inofensivos. E pensar que essa canção estivera proibida por tantos anos, que poderia ter sido suprimida, suas gravações recolhidas e destroçadas, esquecidas. Mas não: ela ressurge para me lembrar outra vez a tristeza de um povo sempre vencido, essa mesma que antes vinha a lume para incendiar toda uma juventude indignada, hoje que a tal canção, como outras, já não pode despertar ninguém, sequer influenciar um estudante que seja, além de umas tímidas fagulhas, hoje permitida entre a temperatura branda e as tranquilas folhagens e a brisa suave que é a primavera dos eleitos, dos privilegiados. Hoje um tanto tarde, é preciso admitir. Hoje, que é inofensiva. Claro.

A conspiração dos felizes

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Guia de leitura

Imagem: Raphaële Coolombi. Folhas 5 (detalhe inferior).

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