Office in a Small City por Edward Hopper

E aquela tarde suave, tão bela…

Se bem que, nesse andamento de agourentas circunstâncias, o que mal ou bem acontecesse, que acontecesse de qualquer maneira.
Em minha vida, o pior já havia acontecido.

dia27Como bom conhecedor de minhas diarreias, entendo que a formação de gases, e não exatamente as contrações intestinais, é o que força a saída e causa o mal-estar. A essa altura da tarde, nem a mais intensa primavera nem a brisa mais benfazeja poderiam influenciar-me. Eu calculava que aguentaria pelo menos mais meia hora sem problemas, a julgar pelo estado em que me encontrava. E os gases proliferavam. Abundavam.

Vanessa devia ter percebido alguma alteração em mim.

“Que foi? Está passando bem?”

Eu me sentia trêmulo. Enrubescido. Febril.

“Tudo bem”, eu disse. “É só esta dor de cabeça que às vezes… Esta maldita… Esta enxaqueca do caralho…”

Lamentei ter dito isso assim, arrematando com esses respingos de vulgaridade, mas foi só uma distração. Desde o começo, eu havia prometido a mim mesmo que usaria um palavreado polido e inteligente.

“Quer um comprimido?”

“Obrigado.”

Recusei, dizendo-lhe que nunca tomava remédios, que era naturalista, só me tratava com dietas especiais em harmonia com o cosmo, e que a cura para todos os males estava na natureza. Ela não acreditou, é claro. Aliás, se eu fosse mesmo assim, já teria meus resfriados de inverno convertidos em pneumonias terminais, durante os longos períodos de umidade que são uma constante na capital. Depois, o que eu estava sentindo não era senão uma cólica intestinal, o que o comprimido dela só faria piorar.

Aproveitando a brecha, tentei engajar-me no diálogo, convidando-me a participar da mesa novamente. Falei muito sobre minhas dores de cabeça, e isso os irritou bastante. Disse-lhes que suas causas eram misteriosas, tratava-se de um caso único na medicina, que, se me mudasse de cidade, talvez, então… Etc., etc… Também James Watt sofria, desde menino, de enxaquecas crônicas, e seus pais chegaram a supor que ele fosse um retardado mental. Pequenas lembranças como essa consolavam-me, fazendo ver que eu não era o único. Grande coisa. O tempo que eu acreditava poder controlar-me era suficiente para que eles fechassem a conta e fossem embora dali. Certamente não se demorariam muito mais no café, do contrário lhes restaria pouco tempo para copular. E o ônibus dele sairia às dezenove horas, se eu bem me lembrava.

Essa não era a primeira vez que eu idealizava um crime. Também já engendrara sequestros políticos e assaltos mirabolantes. Nem era a primeira vez que pensava em assassiná-los, a esses dois. Vanessa, por exemplo. Quantas vezes já desejei sua morte, desde que a conhecera? Quem de nós nunca desejou, pelo menos uma vez, a morte de alguém, e especialmente de alguém que nos cativa de uma forma incompreensível? Sim, eu já havia me decidido: matá-la nessa mesma tarde. Matar Vanessa! Matar Copérnico! Liquidá-los, definitivamente!

Mas como (eis o que de fato não se deve desprezar), como faria isso?

Não seria difícil despedir-me, para depois segui-los furtivamente até o apartamento dela. Tenho muita prática nisso, pois já segui dezenas de pessoas, por coincidência todas mulheres, só para saber aonde iam, no que trabalhavam, coisas assim. Voltando: logo que entrassem, eu bateria à porta, já com a arma apontada ao primeiro que abrisse. Então ordenaria que ficassem em silêncio, fecharia a porta atrás de mim e dispararia um tiro em cada um, eliminando-os sumariamente. Pronto. Feito.

Não, absurdo, não posso fazer isso: os vizinhos ouviriam os disparos.

A arma só serviria para conduzi-los. Melhor seria asfixiá-los com travesseiros, algo assim. Trancaria a porta por fora. Sairia do edifício como se nada houvesse acontecido. E, no caminho para casa, jogaria a chave num bueiro qualquer. Isso. Perfeito. Ninguém jamais entenderia esse crime. Não haveria sequer uma única pista, um único motivo. Seus familiares, seus amigos não me conhecem, ninguém me conhece, ninguém sabe que eu existo. Como me encontrariam numa cidade dessas, um vespeiro de tais dimensões, a mim, que aparentemente não tinha nenhuma relação com os dois jovens assassinados? Sim, pensava nisso com um prazer sardônico, como se tudo já se houvesse consumado. Como me encontrariam? Como?!

Indo até onde moro, eu geralmente estou lá. Seria muito fácil, pois eu havia deixado meu endereço com Vanessa. Asno incorrigível! Naturalmente, isso complicaria as coisas. Do jeito que esses investigadores de hoje em dia são abelhudos, certamente iriam à minha procura para fazer perguntas. Como sair dessa? Como?

Surrupiando, de sua bolsa, o papelzinho com o meu endereço, antes de sair. Era elementar demais. Era até vergonhoso que eu não houvesse pensado nisso de imediato. Bem, quanto a esse ponto…

Que mais, que mais?

Era preciso premeditar tudo com o maior cuidado e principalmente ter coragem, sangue-frio e presença de espírito para contornar qualquer adversidade que porventura… Presença de espírito, isso mesmo. Porque, afinal, esses planos todos poderiam não dar certo, e geralmente as coisas, comigo, costumam dar-se assim. Se um único pormenor falhasse, eu estaria vergonhosamente perdido. Um horror, nem queria pensar nisso. Também tinha que considerar a hipótese de suicidar-me, caso fosse preso em flagrante. Mas só em tal caso, bem entendido – se bem que, nesse andamento de agourentas circunstâncias, o que mal ou bem acontecesse, que acontecesse de qualquer maneira, pois, em minha vida, o pior já havia acontecido.

Precisava ir em frente e tratar de outros detalhes como, por exemplo, onde conseguiria uma arma. Eu nunca tive uma, nem sei quanto pesa uma coisa dessas. Mas, pelo que vejo nos filmes, deve ser bem fácil de manejar. Qualquer mocinha esbelta o faz sem muita dificuldade, nem precisa segurá-la com as duas mãos. É o caso de se dar crédito aos filmes, e isso sim é difícil. Bem, quanto a mim, não me lembro de haver atirado em qualquer coisa alguma vez na vida, exceto naqueles patinhos de latão em barracas de quermesse, aqui não esquecendo de acrescentar que eu mal acertava o quadro pelo qual eles desfilavam continuamente, para depois reaparecerem do outro lado, com aqueles sorrisinhos de sonâmbulo, zombando de minha péssima pontaria. Podia também imaginar uma série de Copérnicos com aquele sorriso de pato de latão.

Aliás, era preciso rever tudo desde o início: não haveria nenhum sentido em fulminá-los com um projétil. Melhor se eu me revelasse e lhes dissesse tudo, tudo o que tinha a dizer.

Lembram-se de quando estudávamos juntos? Pois é, eu também. Eu também…

Seria muito mais excitante poder assistir às suas expressões de pavor, tão imprevisíveis que eu nem era capaz de imaginar.

Aposto que não acreditariam se alguém lhes dissesse que um dia seriam mortos por terem humilhado uma pessoa, não é? Principalmente nas mãos de um sujeito infame como eu. Eu, que nunca encontro ninguém e hoje cheiro mal por ter esquecido de usar o desodorante. Hei de vingar-me hoje da humanidade.

Tremia só em pensar nisso tudo. Era preciso mais sangue-frio.

Eu, de quem ninguém foi se despedir na rodoviária, acabei encontrando vocês nesta maldita cidade, e estou hoje aqui unicamente para exterminá-los. Eu!

Primeiro, atiraria em Copérnico, atingindo-o no estômago, para que agonizasse um pouco.

Eu, que vocês sempre desprezaram por não ser ninguém, vou levá-los às primeiras páginas dos jornais com meu crime hediondo, inexplicável, e torná-los famosos. Imaginem…

Vanessa gritaria como uma louca, levando as mãos à cabeça e emitindo guinchos agudos, estridentes.

Olhe, Vanessa. Olhe bem. Veja isto. Veja como acabo com ele. Eu, com quem seus amigos se divertiam queimando o rabo com isqueiros! Eu mesmo, a quem diziam quando esbarravam por acaso: “Ah, você está aí?”. Sim, Vanessa! Sim, querida: eu estou aqui!

Não, não, eu já havia descartado os tiros. Teria de matá-los com alguma outra coisa.

Eu, que ainda não decidi como matá-los…

Que tal uma estaca?

Olhe, Vanessa. Olhe isto. Veja como acabo com ele, como lhe enterro esta estaca no peito, à maneira daqueles filmes de terror que ninguém aguenta mais…

Vanessa amarrada a um canto, completamente histérica. E os olhos dela arregalados, lindos!

Olhe, Vanessa. Olhe isto. Veja bem. É assim que se põe fim a todos os vampiros. Aos conspiradores! A todos os que, com suas alianças e sutilezas, sugam diariamente o sangue honesto dos pobres!

Haja sangue-frio: agora eu precisava ir até o fim! E se, por acaso, ela me perguntasse: “Mas por que fazer isso? De que adiantará matar nós dois? Quem saberá…?”.

Eu saberei, Vanessa. Eu saberei!

Na verdade, aquilo seria só o começo. Mesmo que me prendessem e torturassem, como faziam os militares com os estudantes, mesmo que me fuzilassem, alguém teria de ser o primeiro. O que eu estava começando era uma revolução.

Eu, que ninguém acreditava ter nascido para nada de muito importante ou significativo, eu que nunca tive vocação para carreira nenhuma, para porra nenhuma, muito menos poderia ser alguém útil à humanidade, encontro-me aqui, pronto a deflagrar uma guerra sem fim aos que conspiram no mundo todo! E aqui estou, com minhas estacas implacáveis, minha vida ridiculamente vulgar. Olhe bem, Vanessa. Veja. Veja!

Deus das exclamações! Que seria o fim disso? Eu tinha a testa molhada de suor, não conseguia mesmo parar de pensar. E me contraía, trêmulo. Sentia que desidratava.

Sei que muitos se juntarão a mim, tantos cujas vidas perderam o sentido por causa de vocês! Vocês que, com seus conchavos e infinitas articulações, aliados desde aos homens do Congresso até ao mais remoto latifundiário, tramam conservar a miséria e tornar outros mais pobres para que nunca lhes faltem escravos em abundância! E estes estarão buscando outra vez o sentido que justifique suas existências, simplesmente à custa de retomá-lo a seus opressores. Não haverá mais suicidas nem mortos-vivos. Palavra por palavra, gesto por gesto, consciência após outra! E seremos um exército de miseráveis, de famintos, de esmagados. Olhem bem todos: a revolução está em andamento!

Uma estaca? Onde é que eu iria arranjar uma estaca? Ridículo.

Olhe, Vanessa. Veja isto. Grite, grite! Grite o quanto quiser…

Não, merda, ela não podia gritar. Os vizinhos ouviriam do mesmo jeito.

Do início. Vanessa amordaçada, a um canto (ela já estaria amarrada, não sei como), sem poder gritar, e os olhos dela arregalados, lindos, como já disse. Em contraposição aos virtuosos heróis que lutavam pela donzela e se arriscavam para defendê-la, valorizados nas histórias lendárias antigas, ali estava um herói moderno e inusitado, não menos intrépido e não menos laborioso, pronto a destruí-la. E ela, linda como sempre, atraente… Ora, como foi que não pensei nisso? Ela estava em minhas mãos. Quem sabe poderia violentá-la, submetendo-a a meus caprichos masculinos. E que ideia excitante! Nenhum homem resiste a um pensamento desses, tendo como fêmea-alvo aquela a quem deseja apaixonadamente.

Olhe, Vanessa. Veja isto. Olhe só…

Manteria Copérnico vivo para assistir a tudo, até que o meu último impulso fosse saciado.

Olhe, Copérnico. Veja só. Sabe que, no fim das contas, eu gostei muito de ter encontrado vocês? Lembra de quando estudávamos juntos? (Não, eu já havia dito isso.) Eu, perto de quem vocês se despediam na saída, combinando clubes e festinhas em voz alta, para que todos ouvissem. Eu também quero me divertir, colegas. Vocês não pensaram nisso? Eu também…

Mas não conseguia ver a expressão dele. Era impossível conceber alguma alteração naquele rosto dele.

E nossa amiga Vanessa é um excelente programa, você não acha? Hein, Niquinho? Claro que acha. Agora veja isto. Olhe bem…

Vanessa amordaçada, possuída.

Então, Vanessa? Está gostando? Eu sei que sim. Pelo menos, em alguma coisa, sou um homem como os outros, não acha? Não, não me refiro a isto, especificamente. Falo dos desejos, das taras…

Vanessa amordaçada, a faixa de tecido negro passando-lhe pela boca, escondendo-lhe parte do rosto e destacando ainda mais sua nudez de conspiradora capturada.

Não gosta que eu aperte assim? Não acredito.

Mãos amarradas. Os pés também, separadamente.

Não quer assim? Por que não? Você sempre pôde fazer o que bem quis, não lhe custará nada ceder um pouco. Além disso, temos todo o tempo do mundo…

Eu babava de prazer. Tremia.

Oh, Vanessa… Oh, meu Deus…

Corri os olhos por toda aquela gente das mesas, homens e mulheres conspirando o tempo todo, entre sorrisos e frivolidades. Se algum deles soubesse, se alguém ali soubesse a metade do que se passava em minha cabeça… E aquela tarde suave, tão bela. Quem poderia dizer que, num dia assim, se desenvolviam planos tão perversos, rascunhados por minha mente perturbada? Eu, que, algumas horas atrás, me sentia parte da primavera, daquele domingo de outubro…

A conspiração dos felizes

47. Hei de continuar fingindo sempre – sequência

45. Foi então que… – anterior

Guia de leitura

Imagem: Mark Rothko. Ritos de Lilith. 1945.

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