Office in a Small City por Edward Hopper

Hei de continuar fingindo sempre

Tenho apenas minha morte como certeza.
Uma vez aqui, tudo me atormenta e exige continuidade.

Paul Naller. Café escondido.Então, passou pela calçada uma família distraída e de bem com o dia. Os jovens pais levavam pelas mãos um casal de crianças pequenas. Um garotinho de óculos que se parecia comigo recordou-me drasticamente a infância. Sua irmã menor, também feinha, com seu andarzinho desajeitado, que era manca de uma perna, fez-me comovido, num repente de incontrolável ternura. O choque dessa visão com o que eu cultivava de sádico um instante atrás quase me pôs a chorar. Observei os pais enquanto passavam. Apesar de não muito bonitos, irradiavam simpatia, pareciam felizes, e isso os tornava belos. Todos eles usavam aquelas roupas bem simples, mas limpas e bem cuidadas, com o zelo da pobreza. Não eram conspiradores, e dessa vez eu não fingia: fiquei feliz por sabê-los felizes. E desejei, em meu íntimo, que nenhuma criança do mundo tivesse a minha sorte.

Às vezes, até acredito que eu possa vir a ser uma pessoa de bem. Talvez eu tenha sido, a princípio. Antes (antes do quê?), eu cuidava de meus cadernos e livros, meu material de estudos, movido pela obscura certeza de que poderia salvar-me, aperfeiçoar-me. Mas eu era apenas um, entre milhões. E não poderia afirmar que alcançaria esse êxito. Pensamentos homicidas como esses que me permeavam o cérebro, nessa tarde conflituosa e mansa, pareciam-me inconcebíveis há pouco mais de dez anos, quando ainda era um estudante. Não sei ao certo o que me aconteceu. E só não fui ainda condenado a algum gênero de execução porque não digo a ninguém o que penso, porque não sabem sequer que eu existo. E não deixarei que o descubram, não revelarei o que só eu aprendi. Hei de continuar fingindo sempre que o mundo é justo, que Deus existe, que cada um tem o que merece.

As crianças acabavam de passar com seus pais. De meu canto, sem que ninguém soubesse, eu os cobria de bênçãos e de bons presságios, desejando – e se pedir a Deus funcionasse, juro que eu pediria – que não se tornassem solitárias, que encontrassem, cada uma, outra criança que as acompanhasse vida afora, como havia sido com seus pais. Por minha vez, sempre mais desistia da vida, tornando-me aos poucos o mais amargo de todos os homens. Também é preciso que se diga: tudo o que conto sobre pessoas assim, sobre momentos assim, é a mais pura verdade. Não minto, não distorço, não ironizo quando trato dos mais simples, dos inocentes, das crianças pobres. Talvez eles me inspirem alguma esperança em certas verdades que… Não, nem é preciso estender muito. Uma esperança me basta.

De um momento para outro, eu me arrependia de meus vergonhosos planos, e estranhava-me. Como era possível? Não podia ser eu o mesmo que havia maquinado aquilo tudo. No entanto, sentia-me bastante consciente. Já tive a mesma impressão, ao ler antigos textos de minha autoria – não pareciam ser meus. Chegava a admirar-me pelo que eu próprio considerava bons resultados literários, mas, fora daquilo, não me sentia capaz de tanto. Quando escrevi minha primeira novela, quando julguei que estivesse pronta (chamava-se Não aguentou e matou!), passei a datilografá-la aos poucos, cuidadosamente, cada página um trabalho digno de ser apreciado, pois pensava que aquela matriz, que serviria às fotocópias, acabaria nas mãos dos leitores. No fundo, eu queria que os editores me apreciassem por todo esse esmero, podia imaginá-los dizendo: “Aqui está um escritor responsável e disciplinado, envolvido com seu trabalho e com seu ideal, com o qual podemos contar.”. Mesmo sendo um adulto, não me faltavam tolices desse tipo. Na verdade, sou um homem simples, que se encanta com as ideias e com a beleza. Não podia ter caído na armadilha dos que… Desses que… Vamos, é preciso um pouco mais de autocontrole. A vida não pode ser levada tão a sério, todos sempre dizem isso – até os que a levam muito a sério. Já nem recordava a enxaqueca que me fazia buscar consolo em James Watt, ilustre portador de meu mesmo mal. Aquela diarreia, aquela ebulição de líquidos e gases faziam de minha permanência ali e de meus objetivos íntimos uma situação nervosa, insustentável. Eu sentia como se ardesse em chamas. Tinha a impressão de poder incinerar a árvore mais próxima, se a segurasse com vontade, com uma só mão, entre dentes cerrados. Sentia-me não como James Watt, mas um símile de suas máquinas: um dínamo pressurizado, pronto a fumegar com fúria por todos os orifícios.

Outra vez pensei em abandonar tudo, mandá-los a todos os diabos e sair correndo dali feito um demente, sem nenhuma explicação. Virar a esquina e desaparecer, seguir sempre em frente, como se não fosse parar nunca mais. E daí? Nunca mais me veriam mesmo. Que rissem de mim a vida toda! Talvez eu nem os encontrasse ali, e nada daquilo faria nenhuma diferença. Mas como resistir? Como deixar passar minha oportunidade de vingança? Por outro lado, se eu nem estivesse vagabundeando por ali, não teria encontrado Vanessa e… e… Se, ses! Se eu não houvesse nascido, não fosse o que sou, mas o que sou? Uma pessoa, por pior ou melhor que seja, não passa de um esboço mal acabado, uma tentativa – mas do quê? Tenho apenas minha morte como certeza. Que importam os ses? Uma vez aqui, tudo me atormenta e exige continuidade.

A conspiração dos felizes

48. Válido apenas para pequenas viagens – sequência

46. E aquela tarde suave, tão bela… – anterior

Guia de leitura

Imagem: Paul Naller. Café escondido.

por

Publicado em

Comentários

Comentar