Office in a Small City por Edward Hopper

A tarde (e tudo o mais) pela metade

Sei muito bem, Vina.
De uma maneira ou de outra, ninguém sairá ileso de nenhum encontro humano.

Tom Brown Tráfego urbano.NOVO PLANO BENEFICIA MICROEMPRESAS

Findo um regime de arbitrariedades, descobrimos, assombrados, que boa parte de toda a riqueza do país era, de alguma maneira e em proporções diferentes, enviada ao exterior, sem que alguém o pudesse denunciar. Os responsáveis por tantos desvios, hoje apontados publicamente, estão foragidos ou foram simplesmente anistiados (prescrições previstas em lei) ou morreram de velhos. Sim, tarde demais. Com a mudança de um mandato, revelam-se falcatruas e casos escandalosos. Nada se prova contra os administradores, e arquivam-se os processos. De novo, tarde demais. Éramos envenenados enquanto nos pregavam confeitarias. Traídos enquanto confiávamos. Pois sempre nos conquistam com palavras e com o uso adequado de nossa própria esperança. E tudo se descobre quando já não é possível recuperar o prejuízo nem punir os culpados. Tarde demais, obviamente, nem é preciso que se diga. Agora, toda denúncia pode vir a público, por inofensiva. Mas a vida continua. Os governantes se revezam. Os regimes e as formas de publicidade também. O que descobrirão sobre nós outras gerações? Como estaremos sendo enganados hoje?

Deixei a tarde e o trabalho pela metade. Resisti como pude e até onde. Avançava aos endereços, arrastando passos desobedientes, desertores. Vamos lá, é preciso. Mais um. Atraído por uma galeria de aspecto cristalino, percebi que, durante certo tempo, eu me retivera inerte entre um pilar e um espelho. Sim, eu me sentia demais neste mundo. Que dramalhão.

Tentado pela necessidade de beber, o que há muito não me ocorria. Coisa de telenovela, ela diria. Só não vá destruir a mobília ou os objetos sobre a penteadeira, caso tenha uma, como nos filmes de canastrões embriagados. Você parece um cara inteligente. Palavras dela. Que mais ficou? Levara algo por sua vez, isso de um esquema ser gigantesco, monstruoso – palavras minhas. Grande coisa. Por que lhe teria mostrado isso? Só o que lhe fiz foi mal. No entanto (palavras dela), a vida é mais forte. A vida é sempre mais forte. Uma gargalhada. Vina, uma menina. Você às vezes é luminoso, sabia? Outra gargalhada. Poetas e seus pequenos truques, sempre inofensivos. Podia imaginá-la rascunhando sobre nós dois e sobre nossos últimos dias (palavras minhas, dela), algo que mais tarde, dentro dos infalíveis projetos dela, haveria de tornar-se mais um romance: Uma garota sonhadora vai para a capital, onde encontra um homem pessimista e sem esperanças, para quem a vida resumira-se numa triste rotina. Vina não estaria de todo errada. Mas era a maneira como… como ela… Tão cedo os efeitos do álcool? Eu não era assim. Já me punha a zombar de mim mesmo, dizendo-me que mulheres com malas bojudas e cheias de livros eram o meu fraco. Sei muito bem, Vina: de uma maneira ou de outra, ninguém sairá ileso de nenhum encontro humano. Falo a seu fantasma Vina você se foi como uma sombra entre as chuvas sem um gesto sem um grito Vina outra covarde não soube lutar por mim ora não foi sua culpa uma menina falo também em lutar mas não passo de…

Saí do bar entre uma multidão que se acotovelava nas calçadas, uma passeata de grevistas infestando toda a rua. Gritos e lemas martelavam-me a cabeça mais vulnerável, embora não menos pesada. Empurrei, como pude, todos os que me obstruíam a passagem ou tentavam reter-me, consciente de que aquilo tudo não passava de um efêmero pesadelo, de que o mundo não tinha nenhum futuro e de que a vida era a coisa mais idiota e inútil que poderia acontecer a um planeta.

Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)

24. A vida, sempre mais forte – sequência

22. Encantos que se quebram ao meio-dia – anterior

Guia de leitura

Imagem: Tom Brown. Tráfego urbano.

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