Office in a Small City por Edward Hopper

A vida, sempre mais forte

As portas se abriram com estrépito.
Qualquer espécie de engrenagem ameaçadora, mas sempre, sempre inofensiva.

Tom Shropshire. Chuva na cidade (detalhe inferior)Era ainda o meio da tarde. O metrô não muito lotado deu-me uma chance e um assento. À minha frente, uma mulher pobre, de seios grandes, feia mas de olhar bondoso, com seu bebê ao colo, contando à passageira ao lado sobre a primeira cirurgia, o erro inicial, os problemas do parto mal conduzido e suas sequelas, o retorno, a segunda cirurgia, as complicações, os medicamentos, a prótese, as esperanças, tudo sem nenhum rancor, nenhuma alteração no olhar ou na voz. Os inocentes. Seus gestos. À pequena Vitória, de poucos meses, vítima dos carniceiros da Previdência, faltava um bracinho e um olho. O cueiro encardido mal disfarçava, entre uma dobra, o corpinho enfaixado à altura do ombro. O rostinho disforme, metade costurado, metade ausente, não parecia influir em seu meio sorriso quando a mãe lhe soprava a voz delicada incluindo seu nome, a voz de um anjo dócil e impotente, viajando, como podia, entre as estações de sua vida, num reino de morcegos. A vizinha também a convidava a conversar, e Vitória dilatava um pouco mais os pequenos lábios oblíquos, o olhinho estreito por onde se via um ponto brilhante como flutuando num líquido. Mais uma palavra, um carinho com seu nome, e a criança alargou o que era seu sorriso de metades. Lançou às duas mulheres uma gargalhada contínua, vibrante e ruidosa a seu modo, como se nunca mais fosse deixar de sorrir. As mulheres riram também, com carinho. A mãe voltou-se em minha direção, deu com meu rosto cinzento e mal barbeado, meu ar de cão sem rumo, acenou-me ligeiramente com um respeitoso movimento de cabeça e um sorriso esmaecido. Eu sorri também, com os cantos da boca. Antes de deixar o trem, curvei-me sobre ela e a criança mutilada, quase as acariciei, a ambas. A mulher fitou-me com ternura, perdeu-se num sorriso nervoso, trêmulo, como se me contasse, com o rosto sofrido, uma história pedindo socorro, e por fim verteu lágrimas de quem desejaria dizer alguma coisa, de quem desejaria clamar por alguma coisa, algo além do que apenas pudesse dizer.

“Não importa o que digam, senhora”, falei ao encontro de seus olhos. “A vida é sempre mais forte.”

Entrei tropeçando nos degraus da frente, arrastei-me até o elevador. As portas se abriram com estrépito. Um zunido abafado, como distante, um característico estalar de cabos ou qualquer espécie de engrenagem ameaçadora, mas sempre, sempre inofensiva. Eu me esgueirei pelo corredor escuro tateando as chaves no bolso e vi, mal iluminada pelo elevador estacionado, uma garota de vinte e três anos, cabelos muito lisos cobrindo-lhe o rosto, sentada no chão e retraída pelo frio, vencida por um sono cansado, a cabeça apoiada em minha porta. Ao seu lado, diluída na penumbra, uma mala bojuda, cheia de livros.

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Aqui termina a novela Vina entre os morcegos, do ciclo A conspiração dos felizes. O primeiro post dessa história pode ser lido aqui.

 Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)

23. A tarde (e tudo o mais) pela metade – anterior

Guia de leitura

Imagem: Tom Shropshire. Chuva na cidade (detalhe inferior).

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