Office in a Small City por Edward Hopper

Válido apenas para pequenas viagens

Compreendi que os havia perdido para sempre.
Que o meu passado havia se perdido para sempre.
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Foto de um documento escolar.Movido por um lapso de autocontrole, disfarcei (mal) meu nervosismo e fui me levantando desajeitadamente, pedindo-lhes licença e que aguardassem por um minuto, não saíssem dali, hein? – em tom de fazê-los achar muito engraçada essa brincadeira de não se perderem de mim. Os dois estranharam-me, ligeiramente desconfiados. Devia estar escrito em minha testa que eu correria dali direto ao banheiro. Por sorte, os gases não haviam escapado.

Não creio que tenha demorado mais do que quatro ou cinco minutos para aliviar-me escandalosamente num reservado até então limpo e aromatizado. Passada a crise intestinal e após ter-me convertido mais uma vez ao deus dos felizes, restava-me o caos essencial dos meus planos secretos, porém a mesa estava vazia quando voltei.

A mesa estava vazia quando voltei. Foi o que eu disse. Só os copos pela metade como prova de que ali se sentaram, há pouco, três pessoas, três esboços. Devo ter chamado a atenção de todos quando voltei correndo ao balcão interno, em busca do garçom que nos havia atendido.

“Pagaram tudo. Não precisa se incomodar.”

“Não é isso!”, disse eu segurando-o pela manga, antes que se virasse. “Não é isso! O senhor não compreende? Eles não podem ficar sozinhos, eles querem… querem… Mas que bosta!”

Disparei a correr até a esquina, e dali para uma rua escolhida ao acaso. Dei a volta ao quarteirão, inutilmente. Que ingenuidade de minha parte imaginar que não estivessem de carro. Sou muito imaturo. Serei sempre.

Voltei ao cruzamento da avenida principal, à frente do café, e fiquei ali, sem saber ao certo o que estava pensando, alheio aos curiosos das mesas mais próximas, que certamente comentavam, entre si, minhas atitudes incompreensíveis. Eu me detinha finalmente, após a tarde de minha estranha primavera. Eu me detinha após milhares de anos de civilização e genes repetidos, para que sempre umas pessoas e outras habitassem as cidades e coisas parecidas com cidades. Eu me detinha na esquina de todas as cidades. Outro como eu em Buenos Aires, em Frankfurt, em Alexandria, em Odessa, em Melbourne… Já passava das cinco, e o Sol acentuava sua curva no vértice da avenida sem fim. Limpei o suor da testa, arfando ainda de cansaço. Tudo o que acontecera até então já não era mais nada. Eu estava sozinho. E compreendi que os havia perdido para sempre. Que o meu passado havia se perdido para sempre.

A diarreia acabou voltando aos poucos, por causa de minhas correrias, embora com menor intensidade, obrigando-me a voltar para casa o mais depressa possível. Fui a trote e a galope, andando e correndo, um pouco disto e daquilo, conforme os gases se manifestavam.

No ônibus, amarguei posições incômodas. Por algum motivo, pus-me a rever um de meus fósseis mais pitorescos: a carteirinha de identificação que autorizava o uso de dois ônibus diários, com desconto, ida e volta ao colégio, eu agora um adolescente livre da velha bicicleta traiçoeira, um documento no qual se lia: PASSE DE ÔNIBUS ESCOLAR. Emblema do Estado, arco com dizeres da República. Meu nome com erros. Data de nascimento, cidade, sexo. Em preto e branco, o rosto como assustado de um garoto aos onze anos, olhos miúdos de míope mal disfarçando uma brecha de espanto, como se ainda, e tarde demais, o fato de haver sido lançado ao mundo o assombrasse melancolicamente. Mesmo assim, pudesse aquele menino da foto ver-me hoje, imagino em um de seus melhores dias de brinquedos e pequenas alegrias, ver no que se tornaria e se tornou, como se alguém com o poder de mostrar-lhe o futuro trouxesse imagens por realizar-se, ele que deixaria para sempre de ser um menino, que transcorreria, como todos os vivos, rumo ao último dia, visse no que se tornara, talvez entristecesse e considerasse desde então a perspectiva de abreviar-se o tempo. Tanto quanto talvez risse muito, incrédulo e não permitindo que aquela absurda revelação lhe atrapalhasse um dia de folga. Uma foto e infinitas outras: todos os humanos da Terra. Cada rosto e olhar ilustrando cédulas e documentos de identificação, alastrando-se entre as engrenagens do velho tempo. Alguns sorriem, em cores. Um resquício de sonho, um lampejo de esperança – e pensa que pode voar, o réptil. Última linha do documento, como dependurada sob o rosto, a observação quase um alerta, negritos, e não itálicos, no original: Válido apenas para pequenas viagens. Mal me conheciam os que me cercavam, professores e colegas de classe. Nem esperavam de mim outras viagens. Só eu cismava em silêncio, que sempre em meu silêncio iniciavam-se todas as viagens. Mas não creio que as tenha feito.

A conspiração dos felizes – Guia de leitura

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49. Praguejando em silêncio – sequência

Imagem: Foto de um documento escolar.

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