Office in a Small City por Edward Hopper

Foi só um sonho ruim

Minha viagem que continuava, sem autorização. Meu sonho se fazia por si mesmo.
Meu sonho se alimentava da solidão em que eu me via. Meu sonho erguia-se no escuro. Como um monstro.

Isaac Dobrinsky. Retrato de um menino. 1948.Passada a evacuação que me havia exorcizado, eu me sentia a criatura mais desprezível de nosso país. Tive muita vergonha de mim mesmo. Nem parecia que tudo aquilo havia acontecido, justo a mim, que nunca encontrava ninguém. Nem parecia que era a primavera outra vez. Minha enxaqueca vinha voltando, latejava-me nas têmporas. Nem parecia que eu havia sofrido por meus traumas de colégio, que eu havia amado e odiado Vanessa ainda uma vez, que havia engendrado taras e perversidades, isso numa única tarde. Minha solidão deve ter causado tudo. Estive muito sozinho. Estive muito sozinho nos últimos dias. Nos últimos anos, eu acho. Não sei como, mas nesse momento imaginei alguém que se referisse a mim, dizendo: “Pobrezinho… Deve ter sofrido muito quando ainda tinha alguma chance. Vejam no que se tornou sua primavera.”. Supunha uma mulher mais velha, outra vez a tia idosa ou uma avó, outra vez as imagens fictícias e maternais. Ou, o que me era difícil aceitar, a mãe que há muito tempo não tinha, que talvez nunca tivesse tido de verdade.

Apesar de tudo, eu me sentia contente por ter encontrado Vanessa e Copérnico e por ter vivido essa tarde, mesmo de uma maneira atribulada e confusa. Compreendi que aquilo tudo havia emprestado algum sentido ao meu dia, a um dos muitos dias de minha existência incerta e sem remissão. Algum lapso de estranha felicidade fazia-me prever novas depressões, entre ideais mal elaborados. Pensava em meus antigos colegas de escola, hoje em suas profissões. Mas algo em mim sempre fora mais forte. Meu sonho de escrever alguma coisa, eu nem sabia para quem ou para quê. Minha viagem que continuava, sem autorização. Meu sonho se fazia por si mesmo. Meu sonho se alimentava da solidão em que eu me via. Meu sonho erguia-se no escuro. Como um monstro.

Talvez não seja nada disso. Ou tudo isso. Variações. Depois das palavras, não se comunica o dentro. As pessoas dizem: isso não é amor, é paixão; isso não é paixão, é amor. Não compreendem a grosseria dessas definições que lhes são impostas. Outro como eu sentirá a mesma solidão? As paixões são as mesmas para todos? O fato é que nos acomodamos aos signos. Fomos ensinados a ignorar o infinito que se interpõe entre uma palavra e outra. Demos nomes aos sentimentos, e isso nos tornou mais pobres. É verdade, temos medo. (A dor de cabeça aumentava. Logo teria de recorrer aos comprimidos.) E o que somos afinal? Tentativas. O que fui? Uma tentativa. Células. Bilhões e bilhões, de tempos em tempos, formando um tecido heterogêneo e sem motivo, sem futuro. Pois o futuro que se almeja é um tempo em que não haja mais projetos nem mais futuro, quando tudo esteja desvendado. Sabendo-nos a todos provisórios, peças minúsculas de um jogo genético sem fim, há de chegar o dia em que nada mais terá importância. Nem os conflitos (que ninguém aguenta mais), nem a cultura, nem a mensagem que ficou ou a que ninguém escreveu. Não, nada. Nem a vida. Dia em que nos caberá avaliar o passado da história e dizer: “Foi só um sonho ruim, uma brincadeira. Mas passou.”. Não, nem a vida. E então, seremos todos outra vez universo.

Louco. Mas, de qualquer forma, gostaria de acreditar que, no momento de minha morte, alguém esteja aprendendo ou descobrindo alguma coisa nova. Bem, não sei por que me ocorrem pensamentos assim, talvez com a esperança de que algo se aproveite, quem sabe, pois algo sempre continua entre uma lição e outra, entre uma vida e outra. E há lições bem melhores do que a minha.

Eu, que fico aqui à janela, imaginando Copérnico e Vanessa juntos, o movimento dos planetas…

Podia vê-los sorrindo um ao outro, brincando nus em alguma cama do mundo, sem que eu existisse para eles. Percebi que tinha lágrimas nos olhos. Estava comovido, e até feliz. Tinha vontade de encontrá-los novamente, abraçá-los como irmãos e dizer: “Queridos! Foi só uma brincadeira.”. No fundo, o que eu queria era apenas participar da vida. Somos todos muito semelhantes, por isso nos procuramos. Foi assim que comecei a escrever: para que um dia alguém me encontrasse. Cada palavra, uma a uma, registrá-las todas o quanto necessário, para que um dia alguém me dissesse, alguém me dissesse algo, alguém me diga. Agora mesmo, estariam nascendo outros Copérnicos, outras Vanessas, outro como eu e, quem sabe, alguém fadado a ser o mais patético dos seres. Minha infância? Minha adolescência? Os anos de colégio? Não se importem comigo, queridos. Foi só um sonho ruim, mas já passou. Como a vida toda, um sonho que também passa. (Não, não sou eu quem lhes diz isso.)

No fundo, era só o que eu queria, amar a todos (todos!) e talvez ser amado mesmo como sou. Sim, desde que me defrontara com o que de fato era minha vida, não um destino previamente acertado, mas o que me franqueava, por ser justamente o que é, a oportunidade de fazer dela o que de mais grandioso pudesse conceber. Por isso, nunca pude esperar por respostas à minha única, desesperada chance. Tenho pressa.

A cabeça me doía. Voltei ao quarto, em busca dos comprimidos.

Queridos, queridos… Perdoem-me. Foi tudo uma brincadeira…

E queria voltar ao colégio, ser o bobo de todos. Só para poder estar entre eles, tendo-os sempre perto de mim.

A conspiração dos felizes

52. Pós-escrito tardio (mas irresistível) – sequência

50. Quase uma conclusão  – anterior

Guia de leitura

Imagem: Isaac Dobrinsky. Retrato de um menino. 1948.

por

Publicado em

Comentários

Comentar