Office in a Small City por Edward Hopper

Expresso

Jennifer Young. Campos da Toscana.
Como os trens e os ônibus: as casas, os quartos,
o leito primeiro – desde então
toda parte, todo leito onde sonhamos –
compõem um espesso comboio de paredes
de trajetória (não vertical, que se supõe o tempo)
horizontal como qualquer viagem.
Embarque, desembarque:
tudo se resume na estação que é.
Os caminhos me pertencem por direito,
direito de homem,
que outros passaram, não me viram.
 
Eu passei e vi a todos.

*  *  *

Correm as crianças rindo, acenando aos que partem.
Todo comboio é menos uma máquina,
mais uma memória.

*  *  *

Segue tua travessia como todo expresso
ao destino do que não te cabe conter.
Que viagem esta, de partida inconcebível?
Que viagem esta, pela qual se deslocam todos os comboios
– no deserto, nas planícies e entre as colinas,
no último pátio do vilarejo e em teu sono?
E te ergues, não se detém o expresso em que hoje estás.
E te deitas, por toda parte segue o expresso sem ti.

*  *  *

Cruza os dias como a nuvem, sua sombra.
Parte do absurdo e se desloca.
Perpassa a montanha, sua vertigem.
Propõe-se a eternidade e se questiona:
pois não vence a distância e a nega?

*  *  *

Por vezes a certeza de que és.

Outras horas te contam que não

e te estendem o espelho.

Os trilhos te conduzem com indiferença.

Todo ruído é um estado do silêncio.

*  *  *

O mensageiro falava nosso idioma,

era um de nós.

Trazia consigo a resposta.

E não soube contá-la.

*  *  *

O invisível sustenta o visível.

A estrela amorfa encontra sua forma.

A terra cria e reclama seus ossos.

Desde o inconcebível antes,

a inefável noite primeva

ou a tempestade imperiosa,

os trilhos trazem o expresso

– em que hoje consideras,

em que hoje vais.

*  *  *

Chance onírica, poema: um desejo

– incontido –

de roubar ao tempo

a essência dos sonhos, o mel dos momentos.

*  *  *

(Tu que me acompanhas, tu também

partes de uma origem,

transcorres rumo a teu destino.

Parte dele era estar aqui.

Comigo.)

 *  *  *

Vida

como a do campo a distância,

as cores suaves e o dia tão grande

e tudo o que passa à janela e que passa.

O tempo e a morte estendidos

sobre as vastas plantações que se renovam

contando – vida! – de como ainda

a tua presença não basta,

de outra ausência contra toda esperança

e de como assim mesmo aprendeste a amar.

 *  *  *

Os montes de feno sob o sol
mais os camponeses que os criam.
Se partes à procura, encontras por fim o teu dia.
Se ficas sem partidas, vem o teu dia e te encontra.
E te recolhe como o feno
após o dia medido de sol.

*  *  *

Em meio às laranjas
acena a jovem camponesa,
sorri.
Bela de formas robustas,
inspira o ato voluptuoso,
irrefreável:
o ataque masculino,
o assalto – o estupro.
Acena (sem saber) a camponesa ao que a deseja.
Sorri.
Em meio às laranjas.

*  *  *

Eis o túnel que essencialmente te serve,

que mais te transforma:

no trecho singular da serra,

enfim o coração da montanha.

*  *  *

Terras alheias por onde se estende a distância, a distância
sépia das memórias, perdida
entre cartas de ornato obsoleto,
cártulas com espaço à caligrafia chanceleresca.
Hoje reconquistadas enquanto as atravessas,
por um momento te pertencem como o dia.
Pois a distância não gera o esquecimento?
Pois não se abre o tempo
como se desdobra um mapa sobre as sombras?
Hoje as reconquista o rei abstrato e efêmero que te acreditas sendo
ao longo das terras
– alheias não como o expresso de teu reino agora.
Expresso preso ao dia.
Terras ao tempo.

*  *  *

Quando mudam (vêm

e voltam) as estações,

tornas a compreender que nada nunca muda:

nem os dias que te atravessam cálidos

ou a vegetação que germina,

a Lua

com seus signos secretos, a vida

suspensa no inverno,

a insistência do vento discursando em vão, os mundos

que se erguem,

as estrelas

que se apagam.

*  *  *

Lembrança quase um sonho de outras eras,

pressentes o aroma ancestral de jardins que não foste,

mas onde outros como tu presenciaram

outro mágico momento mesmo.

Outra antiga juventude atrás dos séculos,

outra aérea forma

de fada azul ou breve borboleta,

outras tardes de flores se abriram, outros olhos viram,

outra brisa a te afagar outros cabelos

num tempo sem ti.

O tempo demolindo e recompondo,

organizando mundos sobrepostos,

que nos deixará de si em sua herança?

*  *  *

Que podes observar que já não conheças?

Que perguntas possíveis

já não se armazenavam desde o início em teu íntimo?

O expresso não te permite (nem quer de ti)

mais que o necessário:

até onde é dado seguires

e o tempo que te cabe ficar.

Ainda assim (e à tua revelia)

toda paisagem é de uma realidade infinita.

*  *  *

O comboio se detém por um momento:

que um passageiro encontrou por sua vontade

a estação brutal do silêncio.

(Para nós, ainda, o expresso seguirá.)

O comboio se detém em nome do que se vai (ou fica?).

Desatada a espessa corda, o cordão que o ligava ao expresso,

seu último rosto não nos parece tranquilo.

O comboio se detém.

Num lençol claro envolvemos esse viajante.

E o depomos sobre a encosta de relva.

E o cobrimos com flores que nada mais significam.

E desejamos que durma seu sono sem mágoas.

E nos unimos numa antiga canção de amizade.

Para que uma melodia o encontre ainda.

E a última vibração da terra seja um sinal de aliança.

*  *  *

Ao morto, não mais instigam as paisagens.

Nem ele precisa avaliar o tempo,

apreender as estrelas em qualquer conceito

ou comentar contradições

do que uma vez lhe serviu como idioma.

Outra, sua distância:

seus dias não mais lhe cabem.

Nós, a que distância somos?

Que conceitos e idiomas apartam-nos das evidências,

das respostas que nos abrirão as planícies

e os dias claros?

*  *  *

Colina de relva que guarda os mortos,

claridade sempre a de um mesmo dia.

Respira este ar

e o sol de teu dia

– que é o mesmo dia,

sempre

o mesmo dia.

*  *  *

Árvores esparsas
– e te perdes no bosque.
Nítido o dia
– e te serve a neblina.
Nenhuma fresta entre os sepulcros
– e adivinhas ali o abismo.

*  *  *

Tarde e tão cedo evolui

o cilindro de números num calendário azul

e infinitamente possível.

Para ninguém a estrela que fica

na última noite e tão tarde.

Tarde e tão cedo

termina a vigília – o tempo tamanho,

a medida do sonho tão frágil

que tão cedo passa.

Tarde e tão sempre tão cedo.

*  *  *

Vem a noite, já não se pode o campo.

Seguem os que ainda sonham,

noutra parte arma-se a lente diáfana

que os ignora e à sua breve viagem.

Embora idêntica às suas irmãs antigas,

nunca antes esta se ergueu

– e o primeiro dia do mundo

como estivesse por abrir-se entre os abismos,

sob a vasta lente sideral

que os ignora e ao seu deslumbramento.

*  *  *

Cada noite traz consigo uma sentença.

Cada morto é mais um réu absolvido.

Assiste ao movimento sobre a Terra, estende

a mão à luz que nada conta.

Toda noite as estrelas viajam sós.

E o sol retorna sem o teu consentimento.

*  *  *

Embarque, desembarque

e tudo se resume na estação que é:

sem ter mais do que o soprar de cada inverno,

antes destinados às esperas, às partidas, ao adeus,

fomos sempre nebulosos passageiros.

*  *  *

Sabes que há um preço por toda presença.

A cidade deserta exige de ti

um silêncio secreto, o verso

que não conheces e não consegues calar

(que também não sabes como devolver).

*  *  *

Antes da manhã,

chegam às entradas os carregadores

com as sacas, as caixas, os engradados, as cestas,

frutas

colhidas nas mais diversas terras.

Silencia e perscruta:

nos cantos empilham-se os legumes,

as bananas com suas moscas,

peixes de olhos arregalados.

Tudo nos observa.

*  *  *

Tudo era antes e enquanto. Tu é que chegaste.

Que há de novo e antigo

nos paredões e muros grafitados,

nas cavernas da escuridão pré-histórica?

O touro e o alienígena

repetem todos os deuses do labirinto.

Só nós dividimos entre mil grandes cidades

a herança indecifrável dos primatas.

*  *  *

A poesia sobe dos esgotos,

mas não se esgota

e alimenta ainda os pombos na praça:

tudo o que existe espera talvez por um verso,

uma palavra secreta.

Quem sabe tu a encontrarás

– antes de perdê-la outra vez tuas viagens.

*  *  *

Pássaros se recolhem da chuva que não veio.

Espessa neblina, hálito de fantasmas: aqui

há um dia e um tempo,

talvez o teu medo ou nada.

Teu tempo que pulsa até um dia,

o que tens sido desde que és,

o que não foste, o que serás ainda

e deixarás de ser – uma ideia apenas.

Atravessas praças abandonadas

onde antes brincaram crianças e pequenos cães:

sombras de um lugar sem nome

sob a densa e invencível neblina de tudo.

*  *  *

Tua sede despreza o poder estrondoso das águas,

sorve as chuvas de outro céu tempestuoso,

rompe as correntes de grande fascínio

que fluem dos mananciais terríveis.

Tua sede,

água nenhuma consegue contê-la.

*  *  *

Assistes à noite sobre a cidade

– luzes de sempre,

sombras da cidade tão conhecida,

tão estranha,

povoada por fantasmas que realmente vivem cada dia

– e pensam conhecer-se.

*  *  *

Não te apresses.

Há lugar

e um verso a cada um.

Juntos construiremos poemas de bom aço

onde se arquivarão os diários

e as cartas

e as gentes com seus sonhos.

Antes da estação futura onde a palavra seja outra.

De onde não mais partiremos.

*  *  *

Como os trens e os ônibus,

esta, a viagem.

O jogo enigmático é um fato:

uma vez iniciado implora por seu fim

sob a máscara de um falso desafio.

*  *  *

Como os trens e os ônibus,
esta, a viagem.
Para, olha, escuta: é um louco que grita.
Sua voz escura como um calafrio noturno
atravessa todas as portas de pedra.
 Mas não te alcança.  

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Rapsódia em cinza

Imagem: Jennifer Young. Campos da Toscana.

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