Office in a Small City por Edward Hopper

Todos nós morreremos na semana que vem. Parte 2

Pesadelos recorrentes

Por que me acontecia sonhar coisas assim? Por que a morte não me dava tréguas?
Cenas tão nítidas como as de meus pesadelos eram o que mais me causavam pânico, sendo tudo tão claro e cotidiano
.

Wassily Kandinsky. Capricho. 1930Mais à frente, há um grupo de instrumentistas, música latino-americana típica. Estão sempre ali. Suas canções são tão contagiantes que acabam gravadas na memória e continuam dentro de nós por outras ruas onde esses músicos não estão – o som das flautas, o ritmo das cordas… Os cidadãos, encantados, formam pequenos grupos ao redor deles e revezam-se conforme o tempo de seus compromissos lhes permite ficar. Esses estrangeiros cantam sob o sol desses dias, a plena voz, como se a vida fosse sempre música.

Nada do que conto sobre eles teria alguma razão de ser nestas anotações se, em certa noite, não houvessem surgido inesperadamente para tocar sua música em meio a um de meus pegajosos pesadelos. Estavam ali, como eu os via durante a vida, tocando e cantando, tarde de sol e vento, outono sem árvores, urbano. Então, chegaram uns homens de roupa escura, em meio ao movimento normal dos dias úteis, carregando caixões vazios. Deitaram os músicos, um a um, nesses caixões, para levá-los dali, sem nenhuma resistência. Nenhuma palavra, nenhum gesto. Nada, nem poderiam. Era a morte que os levava. Saíam os féretros, carregados pelos agentes noturnos, à luz do dia, à luz intensa de um outono ainda vivo. E as pessoas continuavam passando, passando, passando…

Acordei de um pulo, enrijecido de pavor. Por que me acontecia sonhar coisas assim? Por que a morte não me dava tréguas? Cenas tão nítidas como as de meus pesadelos eram o que mais me causava pânico, sendo tudo tão claro e cotidiano. Era isso, precisamente, o que me exasperava. Outra é a agonia ao emergir de sonhos obscuros nos quais se enfrentam aranhas gigantescas, abismos, demônios, que essas coisas estão fora de nossa realidade, deixam de nos preocupar tão logo despertamos para a luz de outra manhã. Mas os meus sonhos, estes se mostram efetivamente pavorosos, pois são banhados pela mesma luz matinal que, em outros casos, serviria para dissipar as trevas. Em meus sonhos, não há trevas. O que há são dias de luz, trânsito de gente, há um mundo claro e festivo de movimentos avulsos, como se não houvesse a morte. Mas há também a morte.

Volto às ruas, saio novamente para o trabalho, e o que vejo é a continuação de tais pesadelos, o seguimento do que me aterrorizava horas atrás. Pois esta verdade, a morte, está constantemente ao redor: cada pessoa que passa, eu mesmo enquanto observo as ruas, no verão ou no inverno, a qualquer tempo, em qualquer parte. Se há algo que de fato une a todos, principalmente e com certeza, é a morte. De resto, os homens apenas se parecem.

Em função de oscilar involuntariamente entre a insanidade e a razão, muitas vezes me senti diferenciado dos colegas e à margem dos cidadãos em contínua atividade. Kafka, Van Gogh e Mussorgski não puderam curar-se. Eu recordava outros, de inquestionável lucidez, buscava compreender-me por meio deles, considerando a maneira como Lavoisier via os fenômenos ou Leonardo, a natureza. Inspirava-me na mente límpida de certos homens de ciência e na visão perturbadora de artistas singulares – de alguma forma, tudo isso parecia importante para mim. Claro que não sou Mussorgski nem Lavoisier. Mas algo me incomoda como talvez se tenha dado com eles. Só não sei em que ponto me perco ou me encontro.

Quando me levanto, pela manhã, depois de um pesadelo assim, a vida se faz muito difícil. Sair de casa e atravessar um dia como outro parece-me um sacrifício supremo, um extremo de minha condição. Fico ainda mais deprimido se chego ao escritório e por lá encontro colegas entusiasmados, que acordaram de bom humor, batendo-me nas costas e sorrindo bons-dias, enquanto insistem em perguntar o que há comigo. O que há não é comigo. Sou apenas um agente, um minúsculo representante da consciência humana, que absorveu, por acaso, as piores impressões da existência. Como explicar-lhes isso? Inventam-se então dores de dente, cansaço, descrença quanto ao futuro da nação ou algum outro incômodo que eles possam compreender.

A conspiração dos felizes

 O idiota incurável – anterior

O fato de estar vivo – sequência

Guia de leitura

Imagem: Wassily Kandinsky. Capricho. 1930.

por

Publicado em

Comentários

Comentar