Office in a Small City por Edward Hopper

Todos nós morreremos na semana que vem. Parte 3

O fato de estar vivo

Tudo não passa de um exagero imaginativo, um sofisma de mau gosto.
A morte é uma ideia abstrata e não pode ser considerada uma das faces desse todo.

Tim Liu. Moeda 86“Cara ou coroa?”, pergunta-me um deles, com uma moeda.

Esse sujeito vive fazendo isso. Tem um marco alemão que ganhou ninguém se lembra de quem, embora ele sempre o diga, e costuma abordar os colegas com a mesma brincadeira. É preciso escolher uma das faces, para que ele termine logo com essa sua tolice predileta, pois ele tem outras tolices.

“Cara ou coroa?”

Qualquer que seja o resultado, ele sorri satisfeito. Se ganha, porque ganhou. Se perde, havia apostado alguma coisa consigo mesmo, segredo. Melhor: ele nunca perde. Se alguém quer saber que raio de moeda é aquela, ele tem o prazer de explicar que a ganhou, não me lembro de quem, e que aquilo é um marco alemão. Chego a acreditar que só faz isso para mostrar aos outros essa sua moedinha, mesmo sabendo que todos ali já a conhecem. Com um tipo assim, isso é bem possível.

“Cara ou coroa?”

Que importa isso? Importa que esse colega inconveniente, com sua moeda enfadonha, despertou-me (sem saber, claro) para uma triste metáfora da realidade dos que vivem. As duas faces de uma moeda são o exemplo mais árido da limitação de caminhos. Duas opções, dois únicos resultados possíveis, duas únicas faces de um todo. E nisso, o pobre marco alemão tanto se distancia das trilhas de dominó. Assim a vida e a morte, duas faces possíveis de uma mesma realidade. Está bem, desisto. Tudo não passa de um exagero imaginativo, um sofisma de mau gosto. A morte é uma ideia abstrata e não pode ser considerada uma das faces desse todo. Seria, no máximo, e somente, o aniquilamento da única face real, a que se mostra virada para cima e da qual se pode afirmar que é verdadeira. É na vida que tudo acontece. Tudo, inclusive a ideia de morte. A moeda da existência é ainda mais pobre que um marco alemão: só tem uma face. Sim, a agitação humana, o amor, a esperança… Uma pobre esmola.

Como seria possível romper com tais limitações? Talvez constatando a existência de realidades alternativas, uma terceira face da moeda, por exemplo. Uma quinta estação do ano. Uma oitava nota musical. Um terceiro sexo, que não se parecesse com nenhum dos dois. Um deus e até dimensões espirituais, desde que não fossem mais tediosas do que a nossa. Mas logo despertamos de tais fantasias e renunciamos à nossa imaginação obstinada, forçados a retomar a mais pungente das limitações, que é a vida. O fato de estar vivo.

“Cara ou coroa?”, ele insiste.

E nunca perde.

Com o tempo, compreendi que a morte não me atormentava. Mas não que estivesse curado. Apenas eu via por outro ângulo as limitações da realidade, a vida e os ciclos básicos que lhe dão início e fim. Para isso, foram necessários mais alguns pesadelos. Finalmente eu despertava para outra faceta dessas cogitações, passava a entender isto: o que me afligia não era propriamente a morte. Não o fato morte, a morte de alguém ou a minha. A razão de meus pesadelos era o fato de a vida consumir-se inutilmente, dia após dia, o tempo passando por nada e à custa de muitas gerações sucessivas. A rigor, a vida não tem objetivo nenhum. Os movimentos absurdamente vãos, os sacrifícios pela sobrevivência, os conflitos pessoais e coletivos, guerras, paixões, poesia, poder e sangue revezando-se entre todos os povos da Terra, tudo o que eu podia imaginar perdendo-se no vazio, na vertiginosa dissolução de todos os milênios. O passado, o presente, o futuro imaginado, tudo sempre perdido. Custou-me verificar essa verdade tão sabida por todos, mas ignorada por mim, pois demoro muito a perceber as coisas, mesmo as mais simples.

A partir de tais descobertas, tudo o que existia e que eu podia observar passou a ter outro significado, isto é, nenhum. Sempre nos foi ensinado que o homem é uma soma de culturas, que somos hoje fruto do trabalho ancestral de outros indivíduos, muito bem, muito bem mesmo, professor. Tudo isso me parece certo. Mas o que fazer com esta areia? Passar o tempo de uma vida apenas consciente disso? Somos os herdeiros, compreendo. Mas qual é a herança?

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Imagem: Tim Liu. Moeda 86.

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