Office in a Small City por Edward Hopper

Todos nós morreremos na semana que vem. Parte 4

Panfletários, mas por quê?

É preciso perguntar a todos os que vivem por que fazem tudo o que fazem.
Eles, sem dúvida, terão respostas prontas, justificativas, pretextos. Eu não.

Ludwig Sander. Pawnee VIII. 1969.O tempo passa, nem a vida é uma verdade. Assim como se olha ao passado, posso adivinhar minha vida no futuro, uma inconcebível ausência. Outras vidas estarão indo e vindo sobre a Terra, a caminho do mesmo fim. Não, não foi um pesadelo. Foi o que me ocorreu a caminho do serviço, passando pelos jogadores de dominó e pelos músicos andinos. Eu havia assimilado um estágio de meus conflitos em que nenhum pesadelo era mais nocivo que a realidade mais previsível.

“Você não está morto. Está vivo, bem vivo”, diz o Freire um pouco incrédulo, depois de eu ter-lhe afirmado o contrário.

Freire, colega de serviço, antes um amigo a quem confio parte de meus pesadelos. Sendo inteligente e amadurecido (mas não só por isso, pois isso não basta), ele às vezes tem a paciência de ouvir-me enquanto caminhamos pelo centro. Usamos nosso intervalo de almoço para distribuir tabloides panfletários aos passantes. Freire e eu somos engajados num movimento em defesa dos direitos humanos, embora nossa participação seja ainda modesta. Aqui, cabe perguntar: por que faço isso, se penso que a vida é uma mentira? Por que me preocupo e me envolvo com movimentos desse tipo? A resposta é simples: não sei. Por que alguém faz qualquer coisa? Todos sabem de suas próprias mortes, e mesmo assim estão sempre fazendo alguma coisa. É preciso perguntar, a todos os que vivem, por que fazem tudo o que fazem. Eles, sem dúvida, terão respostas prontas, justificativas, pretextos. Eu não.

“Será a descrença?”, pergunta-me o Freire. “Você um dia foi cristão, não é? Agora está sozinho.”

“Não sei. O fato é que não me sinto bem vivendo enganado, não mais. Fraudes envolvendo Deus não me bastam, não me servem. E se eu tivesse fé numa vida espiritual, não ficaria nem mais um minuto neste mundo, me atiraria hoje mesmo pela janela. O problema é que moro no primeiro andar.”

Freire ri, eu rio também. É por piedade ou hipocrisia que se ri de uma piadinha tão pobre. Mas Freire era meu amigo mesmo. Ria por amizade. Nunca me sinto muito sério quando penso em Deus, cristãos e coisas desse tipo. Nunca entendi que os cristãos insistissem em viver esta vida até o fim. Mesmo os doentes terminais submetem-se a tratamentos dolorosos que prolonguem seu tempo aqui, contra a vontade da natureza, contra a vontade de seu deus. Tempo inútil, aliás. Mas por que agem assim, se creem em uma outra vida até melhor do que esta? Eles inventarão alguma resposta, tenho certeza. Todos têm respostas, menos eu. Eu, se imagino uma dimensão de vida superior, transcendente e etérea, sinto um desejo latente de partir, partir logo. Para quem tem fé, deve ser intolerável esta realidade.

Respondendo à curiosidade de uma colega sobre os manifestos que eu e o Freire distribuímos pelas esquinas, frisando a importância de tais denúncias e de se cultivar ideais humanitários, ela fez-se sarcástica.

“Ateus falando em ideais humanitários! Onde é que este mundo vai parar?”

Ela é católica, sabe que sou cético e não se entende comigo. É mal dos que têm fé sentir antipatia ou desprezo pelos que não têm. No máximo, piedade. Não era o seu caso, o da piedade.

“Se você não acredita em Deus, por que então se envolve com esses… ideais?”, disse ela. Sim, com ar superior.

“Porque não acredito em Deus.”

Sério. Era justamente por isso. Mas achei que não seria bom esticar a conversa, o que só serviria para exercitar a hipocrisia com que nos tratávamos diariamente. Sendo cristã, ela conhece os Evangelhos, crê em recompensas e castigos, está acorrentada até as orelhas. Quanto a mim, não tenho respostas. Ela, aliás, é dessas que propagam que é preciso amar a humanidade e coisas desse tipo. Claro, porque não faz ideia do que seja amar a humanidade e coisas desse tipo. Não, não se trata da caridade aos necessitados ou da ajuda às vítimas, esse é um jogo que conhecemos bem. Mas perdoar todos os carrascos da história, dos maiores aos menores, compreendendo que isso fazia, sempre fez, parte da natureza humana, e foi tão necessário quanto os mártires para que aos poucos nos conhecêssemos, para que soubéssemos, por meio de um espelho diabólico, quem somos.

A conspiração dos felizes

O fato de estar vivo – anterior

Uma pergunta perigosa – sequência

Guia de leitura

Imagem: Ludwig Sander. Pawnee VIII. 1969.

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