Office in a Small City por Edward Hopper

Todos nós morreremos na semana que vem. Parte 7

Às vezes torno a embriagar-me de esperanças

Sentia-me tão bem que poderia rir de meus pesadelos. Falo sério.
Embora eu pressentisse tal entusiasmo como transitório, pretendia vivê-lo o mais que pudesse, pelo maior tempo possível.

John Houston. Chicago Hancock, chuva em novembro.O que pretendo com isso? Justificar, explicar alguma coisa? Absolutamente. Foi só um sonho que tive. Qual seria então a resposta para a existência? O amor entre os homens? E isso seria possível fora dos sonhos? Não sei, não sei. De qualquer forma, foi maravilhoso ter vivido a manhã seguinte ao sonho de amor. Tudo parecia impregnado de ternura e música, os aposentados com o dominó, os músicos em sua esquina e todos os que passavam por tudo. Cultivar a essência desse sonho tornaria menos obscura a condição humana, embora isso não trouxesse nenhuma resposta. E nessa manhã, eu não cabia em mim. Não sabia o que fazer com tantos sentimentos, ardia com um desejo febril de deter o mundo, deter a vida e recriar meu sonho. Isso me parecia melhor que as doutrinas, não pregava recompensas nem exigia virtudes. Propunha apenas o prazer de amar e contagiar a todos, apenas isso. Era o som das flautas e o ritmo das cordas.

Se algo é maior que a realidade, só pode ser o que habita nosso íntimo abstrato e desperta às vezes com tamanha vivacidade, maior do que o que somos, maior do que nós. Se desmontarmos um edifício, viga por viga, bloco por bloco, e tornarmos a construí-lo, ele será novamente o mesmo edifício. Desfeita a trilha de dominó, juntadas as pedras outra vez, surge uma trilha do mesmo tamanho. Mas se pudéssemos desmontar uma pessoa, célula por célula, e se fosse possível montá-la outra vez, ela não seria apenas seu mesmo corpo, com o mesmo número de células. Essa composição passaria a ser algo maior do que todas as suas células juntas. Sim, tornei-me científico. Na música, isso se parece: as notas que se encadeiam para formar uma canção ou uma sinfonia não seriam belas sozinhas, assim como um bloco do edifício e uma pedra de dominó não fariam sentido isoladamente. A diferença é que um edifício não passa de um edifício, enquanto a canção não é apenas o que é, não apenas o tempo de sua execução ou as páginas de sua partitura. O que faz dela música é ser mais do que ela própria. Então, o que há por trás de suas combinações e compassos? E o que nos torna algo mais do que a união de nossas células enquanto vivos? Não sei. Como vou saber?

No mesmo dia, como de hábito, fiquei com o Freire enfiando panfletos nas mãos dos que passavam. Eu me sentia bem. Imaginava que aqueles tabloides impressos também significavam mais do que papel e tinta, que transcendiam sua condição gráfica e eram uma maneira de semear um sonho, montá-lo aos poucos, viga por viga, célula por célula, para que se tornasse um dia maior do que seu próprio tamanho.

Que bela manhã! Eu estava disposto a amar, amar a todos! Sei que é absurdo. Sorria aos que passavam, cumprimentava homens, mulheres, crianças, brincava com o Freire, um idiota perfeito – eu. Sentia-me tão bem que poderia rir de meus pesadelos. Falo sério. Embora eu pressentisse tal entusiasmo como transitório, pretendia vivê-lo o mais que pudesse, pelo maior tempo possível.

Mas pude pouco. Na mesma tarde, enquanto trabalhava em minha mesa, notei que o colega do marco alemão se aproximava com a mão fechada, sorrindo. Sim, com a abominável moedinha, a que lembrava a falta de caminhos. Que diabos eu poderia dizer-lhe? À pergunta de sempre, pensei em dar-lhe duas alternativas: a vida ou a morte. Mas ele nunca perde. O que fiz foi o seguinte: enquanto ele se aproximava, aproveitei para levantar-me, agindo como se não o percebesse, peguei a primeira pasta que encontrei pela frente e fui até a parede oposta do salão, onde a enfiei numa gaveta qualquer do armário de aço. Isso tudo em questão de segundos. De lá, corri ao banheiro e escapei. Fiquei encostado no fundo de uma divisão, esperando que a porta se abrisse a qualquer momento. Mas ele não apareceu. Devia ter encontrado algum colega mais acessível para explicar que aquilo era um marco alemão, jogá-lo para cima e sair ganhando. Eu havia escapado, e até gostei da ideia. Planejei também uns palavrões para lhe atirar à cara da próxima vez, inclusive sugerindo-lhe em boa voz o que fazer com aquela moeda ridícula, sim, isso mesmo.

Voltei para tirar a pasta de onde a havia enfurnado, mas de longe vi que minha colega (aquela, a católica) estava com a gaveta do armário aberta, querendo saber, muito irritada, quem diabos havia jogado uma pasta ali. Eu havia me esquecido de que aquela era a gaveta dela, na hora isso não me ocorreu. O primeiro impulso que tive foi o de voltar correndo ao banheiro e enfiar-me no fundo da última divisão, mas isso teria sido pior. Quando cheguei mais perto e me confessei, tive de ouvi-la ralhar comigo, com uns olhos nervosos, injetados, mas que também não escondiam algum prazer, justamente pela oportunidade de ralhar comigo. Sim, um bombardeio. Enquanto ela falava e falava, olhava para o chefe, depois para mim, chamando-me irresponsável, perguntando-me o que estava fazendo ao invés de trabalhar, por que havia atirado ali a minha pasta, que havia amassado uns cartões tais que ela conservava com zelo etc. etc. Pedia que eu olhasse o que havia feito, apontava a gaveta aberta. Eu fingia arrependimento, enquanto olhava para baixo. De fato, os cartões estavam bem amassados. Suportei tudo com paciência. E ela falava, falava… Quando parecia haver terminado, eu já segurando a pasta com as duas mãos, ela se lembrava de algo mais e despejava-me outros muitos chavões, para que todos ali ouvissem. Então, eu lhe disse:

“Olhe, eu sei que você está irritada comigo, eu sei mesmo. Você está irritada comigo e com razão. Você está certa e coberta de razões. Tem toda razão mesmo…”

Mas ela não me deixava terminar – embora eu só fosse dizer aquilo mesmo. Conforme eu me mantinha calado, ela me espezinhava ainda mais, e eu pensei que aquilo não fosse acabar nunca. Ninguém sabe como fica um cristão irritado. Na hora, cheguei a pensar: “Bem, acho que vou dar-lhe com a pasta na cabeça.”. Mas contive-me. Após um certo tempo escutando alguém, sempre acabo me distraindo, e como já não estivesse prestando atenção a nada do que ela dizia, fiquei me perguntando em silêncio: o que será que vou sonhar esta noite? Ela falava, falava…

À noite, havia passado completamente minha crise de amor. As semanas também passaram. Tive outros pesadelos, ocorreram-me outras bobagens, cheguei novamente a acreditar no sonho com os músicos e ainda distribuía panfletos nas esquinas. A sensação do sonho inesquecível nunca mais se repetiu. Eu estava curado. Podia viver outra vez como o resto dos homens, uma pessoa normal, sem me preocupar com esses ideais de fraternidade, tão sem importância para cada um. Só me restava a consciência de morrermos todos na semana seguinte, o que é inevitável.

Não há tempo para o que escrevo. Talvez um dia não mais exista o meu idioma. Mas haverá gente, luz, manhãs, e quem sabe alguém despertando entre pesadelos.

Como fica então o meu sonho de unir a humanidade? E tudo aquilo que eu iria cultivar? Ora, não sei. Às vezes me lembro disso e torno a embriagar-me de esperanças. Fico repetindo a mim mesmo que tudo é possível, que as pessoas não são tão difíceis, que certos sentimentos são de natureza contagiante e podem transformar-nos a todos, inclusive a mim mesmo, que talvez eu possa amar de verdade as pessoas que me cercam, cultivá-las. Mas essa católica, esse sujeito da moeda…

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Imagem: John Houston. Chicago Hancock, chuva em novembro (detalhe inferior).

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