Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. O sonho com a jovem calva

Queria saber sobre a sensação de ser beijado daquela forma. O que aquilo significava? Quem poderia ser ela?
Pense com calma. Não tem que responder agora.

Johanna Kirsch. Sono profundo.... Fernando Pessoa deteve-se na questão de não nos conhecermos, pontuando que esse dom (o de nos desconhecermos) é o que nos poupa de ver nos outros nosso próprio íntimo, nosso inimigo metafísico. Para ele, esse íntimo obscuro não podia ser usado na superfície do mundo. Mas foi nas cavernas virgens desse reino oculto que aventureiros como Freud e Jung penetraram, carregando suas lanternas de mão…

Ele queria saber quem era a jovem nua e careca que estava me beijando com tanto gosto e sinceridade. O doutor Stabile é um homem corpulento robusto retangular, um pouco, só um pouco, mais alto do que eu. Olhos grandes, de certa forma realçados por olheiras naturais, dois arcos discretos sob as pálpebras, e isso me recorda aquelas ilustrações que eu via nas páginas da primeira infância, mostrando corujas e mochos preocupantemente silenciosos.

… uma surdez uma dormência um medo infantil do silêncio que esses bichos não pretendiam romper…

Mas ele é silencioso quando quer, apenas. No mais, um homem simpático urbano estudioso atualizado sedutor. Faz parte do que chamam segredo do sucesso – um desses segredos que nunca foram secretos, que todos fazem questão de contar uns aos outros, um pouco orgulhosos e um pouco solidários, passando-nos as dicas de ouro, por vezes uma série de breves premissas, quando não em ciclos de palestras e em livros. Deve ser. Todos esses bem-sucedidos profissionais se mostram, seja lá em que porcaria de área atuem, simpáticos e motivados. Sempre o próprio exemplo do que se deve fazer de bom na vida. E eu já andava cansado, cansado mesmo, de ver gente assim, ao vivo, na TV e em capas de revistas. Principalmente ao vivo. Talvez o fato de eu estar sem trabalho, o que naturalmente é visto como um sinal de fracasso, somado à minha apatia discreta e minhas ideias a meio mastro, aumentasse minha aversão por essa mitologia infantiloide do sucesso.

Nesse dia nessa tarde nesse fim de tarde, o doutor Stabile me perguntou, muito calmamente, se eu sabia quem era a jovem nua e careca que me beijava. As cortinas brancas em sua sala, que não são exatamente brancas, mas de um desses matizes que me fogem que me confundem que só as mulheres conseguem identificar – talvez um cinza muito, muito claro, arriscando uma descrição bem simplória –, sugerem às vezes algum mínimo movimento. Às vezes. Mas acho que não estão, não, em movimento. É como se a minha atenção se voltasse para elas de vez em quando, percebendo alguma ridícula oscilação. Não sei. Algo como uma ilusão de óptica. Lateral, furtiva. Quase convincente. As janelas ficam fechadas, e o ar-condicionado nem sempre produz brisas. Não sei. Não é o caso agora. De qualquer forma, essas digressões fazem parte de mim. São boas para mim. Não me importo de ser ou não ser coerente e focado, não me importo de me perder. Num instante, o caso de as cortinas se agitarem, quase imperceptivelmente ou não, passa a ser significativo, como se houvesse alguém invisível ali, como se eu tivesse nascido só para desvendar esse mistério patético, essa dúvida inútil. Quem é ela? Ele se dirige a mim com paciência, respeitando o tempo de meu silêncio introspectivo. Quem é a garota nua, calva, que beija você? Meu tempo. Meu silêncio. Esses profissionais estão hoje no lugar dos curandeiros e dos ervanários, também dos padres confessores. A esperança é que nos respondam com algo palpável, não com misticismo, não com a mistura de idiotices sem fim que formam as crenças e as religiões. Minha boca se abre e fecha, mas pouco, muito pouco, um soltar os lábios, bem pouco, também como uma ilusão de óptica, imperceptível. Não digo nada. Eu sei quem é. Entendo que só pode ser quem eu penso que é. Mas eu me demoro, não para buscar outra resposta. É porque não quero lhe passar esta resposta, a minha resposta. Porque não vou lhe contar nada. Não sei, não tenho certeza. Eu… não sei, Juan. Ele me observa. Não tem certeza, e isso quer dizer que você tem uma hipótese, pelo menos. Tem uma hipótese? Um ou outro palpite? Meu silêncio agora planejado, fingindo ser mais tenso do que é, mais preocupado do que é. Não. O doutor Stabile olha-me com atenção enquanto estou de cabeça baixa, eu percebo isso. Ele fica muito tempo sem piscar, e essa sua característica natural impressionou-me um pouco no começo, admito. Olhos grandes bonitos com olheiras. Sem piscar. Algum palpite? Não sei.

Eu lhe contei o sonho há três semanas, mais ou menos. Duas mulheres nuas, contra um fundo neutro. Eu não via paredes ou pisos definidos. Uma delas deitada de bruços no chão, aparentemente dormindo. Talvez morta. Talvez não. Ela dorme ou jaz de vez. Não sei. Nenhum sinal de violência, nenhum sinal da morte. Mas talvez morta mesmo, suavemente. A outra, como se tivesse acabado de se levantar, antes ajoelhada ou talvez agachada ao lado da primeira, dá um passo em minha direção, passando gentilmente por sobre o corpo de sua gêmea inerte, os pés cuidadosos buscando apoio no espaço estreito entre uma perna e outra dessa que se estende no chão, pernas de lado, dobradas de maneiras diferentes, de bruços quanto ao resto do corpo, como já disse. Então, essa que está de pé, atravessando com dois passos pequenos o espaço próximo, vem e me beija tranquilamente. Deliciosamente. Sem nenhuma hesitação. Nenhuma dúvida. Lábios um pouco moles, fáceis de pegar com os dentes, fáceis de conduzir controlar dominar. Um daqueles momentos em que o mundo se apaga à nossa volta, em que somos invadidos neutralizados capturados pela soberania irresistível da beleza. Eu sei quem é. Entendo que só pode ser quem eu penso que é. Por causa de seu rosto, que só eu sei. Ela tem um sorriso hesitante. Olhos carinhosos, cor de areia.

… lembrança de uma sensação maravilhosa, como poucas vezes na vida…

Que eu buscasse na memória alguma razão para aquela cena suspensa. Que eu tentasse associar com algo apreendido no dia a dia, que eu tentasse responder a mim mesmo, e alguns pontos entendi como identificados, até mesmo facilmente. Eu tinha visto, no dia anterior ao sonho, imagens de uma campanha contra o câncer, uma menina que havia perdido todos os cabelos. Pediu que eu lhe contasse, continuasse. Fiquei quieto, como se uma nuvem passasse à frente de meus olhos e encobrisse uma montanha. Eu já começava a falar como quem vai caindo. Mas comecei, de qualquer maneira, mais ou menos preparando o terreno – entre o que pretendia contar e o que pretendia ocultar. Porque, conforme tento repassar meus sonhos, eles vão se dissipando desafiadores, como se eu quisesse ler um papel bem à minha frente, mas que estivesse se desfazendo em chamas, contorcendo-se em cinzas desde as margens tristemente agitadas. Eu distorço um pouco, Juan, não consigo passar tudo. Sim, mas é natural. Ninguém consegue. As palavras não traduzem exatamente as sensações, as percepções. Nunca puderam fazer isso. As imagens que desenhamos também não. Só de desenhá-las, elas já fazem perder um pouco a memória do sonho. E nos fazem lembrar, recordar de um jeito diferente. As imagens passam a ser uma nova memória. Mas não temos outro jeito. Tente lembrar o que for possível.

O doutor Stabile entende que eu associei uma coisa com outra. Com algo que estivesse me incomodando como uma doença. Como se as duas, a garota deitada, inerte (a Marjorie), e a que me beijava dócil decidida lenta submissa amorosamente (a Joss Stone) fossem de alguma forma uma doença em minha vida, cada uma a seu modo. Queria saber sobre a sensação de ser beijado daquela maneira. O que aquilo significava? Quem poderia ser ela? Pense com calma. Não tem que responder agora. Eu revisitava o sonho, tornava a repassar toda a sequência, a jovem calva e esbelta, e aqueles lábios moles e úmidos, a nudez que senti com tanta realidade ao abraçá-la, um instante antes de despertar. Tive outra vez a impressão de que as vastas cortinas claras haviam respondido a alguma mínima vibração. Só uma impressão, deve ter sido. O que se esconde parece ser sempre mais interessante do que o que se mostra. Talvez por isso eu quisesse saber mais e mais sobre tantas coisas. E também por isso, eu não pretendia lhe contar tudo. Da última vez que eu estivera ali, o doutor Stabile, com seus olhos paternais de mocho indecifrável, conduzira a conversa para outro plano. Ele havia me perguntado se eu já tinha pensado em matar aquela moça antes. Você já tinha pensado em matar essa moça antes?

Projeto esvanecendo-se

4. Eu não queria que isso acontecesse – sequência

2. Um stone outra vez a caminho – anterior

Guia de leitura

Imagem: Joanna Kirsch. Sono profundo.

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Comentários

2 respostas para “Projeto esvanecendo-se. O sonho com a jovem calva”

  1. Avatar de Creusa Maria Maia de Queiroz
    Creusa Maria Maia de Queiroz

    Maravilhoso trecho ao deixar o leitor ansioso com as indecisões do “Eu Lírico” que se mostra cada vez mais claro aos ouvidos do terapeuta. Mas, por vezes, é preciso coragem para se enxergar e se reconhecer como autor e dono de seus atos. Assim, a leitura vai tomando uma proporção significativa de levar o leitor a ser um co-autor do texto. Visto que ele se coloca no lugar do “Eu Lírico” nessa trama de esconder suas verdades. Parabéns Perce, você nos surpreende a cada nova leitura.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Muito obrigado pela apreciação, Creusa. Grato, sempre, me escreva quando quiser.

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