Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Eu não queria que isso acontecesse

Ela é uma menina bonita, um pouco baixa, pequena, covinhas ao lado do sorriso.
As gengivas superiores sempre aparecem um pouco quando ela sorri.

Chelsea James. Lençóis pela manhã. 2007… Saul Bellow certa vez escreveu que um pensamento de morte por dia nos poupa da psiquiatria. Eu, definitivamente, não concordo com ele…

Meu envolvimento com a Joss Stone começou por acaso. Mas não que eu seja inocente. Eu não disse isso. Não sou. Eu disse apenas que tudo começou por acaso, e isso é verdade. Eu não pretendi que isso acontecesse, não planejei nada. Nem mesmo a considerava de alguma maneira especial. Ela era a secretária do doutor Stabile, caso eu não tenha dito isso ainda. Acho que não.

Conhecia a Marjorie de algum tempo, depois me conheceu. Ela nos atendia como a todos, perguntando e respondendo coisas, marcando e sugerindo horários, abrindo a agenda de páginas pardas, papel reciclado, manejando uma fitinha azul, pegando e devolvendo nosso cartão de crédito, enfim, procedimentos de rotina. Foi a Marjorie quem insistiu que eu começasse a terapia, depois que fiquei desempregado e comecei a (palavras dela) pensar nas coisas. Ela já fazia as sessões dela há uns dois anos e pouco, algo assim. Elogiava o doutor Stabile, sem mencionar, claro, seus olhos de mocho silencioso. Mas isso é coisa minha. Isso que eu disse sobre pensar nas coisas é mais ou menos isso. Minha imaginação é um pouco agitada. Um pouco, não muito. Minha mente está sempre em atividade, eu querendo ou não. Talvez o que pareça encaminhar minhas ideias para a ilusão das explicações todas também não passe de outra ambição inglória do intelecto, um sonho mais palpável porém não menos complicado do que os raciocínios que nos esclarecem e que nos libertam, pouco e muito, como em gráficos de frequência de ondas, do sonho há pouco despertado por nossa consciência primata, o sonho mal amanhecido de nossa existência. Às vezes tenho dificuldade (ou preguiça) de distinguir da realidade as imagens que invento. Sei que exagero em algumas descrições. Pouco importa. Pouco importa, diante de tudo que existe neste mundo.

Na verdade, eu gostaria era de eliminar para sempre muitos dos gestos que fiz, até mesmo na memória, e que pareciam certos e razoáveis, quase inevitáveis, quando os pratiquei e vivenciei, como se nunca eu fosse envergonhar-me deles mais tarde. Isso continua, com a minha queda pela Josie. Minha queda, eu disse. A Queda, segundo a fantasiosa gênese bíblica. Mas que besteira: quase todos os seres vivos dependem dessa queda para continuar existindo. E mesmo que eu e a Josie nunca produzíssemos descendentes, meu tesão por ela seria fortemente o mesmo. Além disso, os dados reais da vida interessavam-me cada vez menos, que não me ajudariam a decifrar um plano mais amplo de meus questionamentos nem me permitiriam ser como sou, quase um artista pintando cinzas e amarelos, sem metas definidas fora de sua febre. Por outro lado, quando me aproximava da Josie, essa minha queda se assemelhava a uma vertiginosa ascensão, já que eu sentia progredir rapidamente na escala dos impulsos sempre mais intensos de um erotismo irrefreável e dominador. A essa altura, o que meu instinto procurava não era que eu resistisse e me reafirmasse, mas que eu cedesse, que eu saísse de mim mesmo, sem restrições, e crescesse até ela, assim como Coco Chanel, seguindo seus próprios instintos e sem contar esforços, enroscava-se entre a sinuosidade de uma árvore para alcançar os telhados. Eu não era o mesmo de alguns minutos antes, e entendia que a Josie também não. Não era o mesmo de algumas semanas atrás, assim como ela agora diferia daquela recepcionista repetitiva que eu conhecera, por trás do balcãozinho envernizado, no consultório do doutor Stabile. E quando eu a beijava, e sentia seus dentes delicados mordendo-me os lábios, eu não queria mesmo evitar essa queda entre os dias. Estava envolvido com minha natureza real. E o que eu beijava era a minha própria ousadia adormecida.

… um colega professor, o Marco Rangel, da Economia, uma vez observou minha capacidade inútil e ingênua de associar uma coisa com outra. Sempre. Ou quase sempre. Coisa de quem é das Humanas? Não sei, Marco, não gosto de empobrecer tudo com classificações. Outros, de Humanas, não pensam como eu. Humanas ou Exatas, tanto faz. Você também poderia sempre, ou quase sempre, enriquecer-se ao associar uma coisa com outra. (Mas sim, eu o entendi: o problema era que o que eu associava involuntariamente, segundo ele, não servia para nada.) Muito bem, Marco. Obrigado por lembrar. Vamos todos até a morte, meu amigo – que também não serve para nada –, fazendo gráficos…

O doutor Juan Stabile é um homem bonitão, com todos os cabelos na cabeça, certo tom grisalho, pelo jeito bem calculado, talvez luzes invertidas, e não deve haver uma mulher no mundo que não o olhe pelo menos duas vezes. Tenho trinta e quatro, e ele deve ter… uns dez anos mais, imagino. Não chega a cinquenta, ou isso no máximo. A Marjorie é fã dele. Ela diz que se deu muito bem na terapia. Mesmo assim, eu não vejo muita mudança na Marje, a não ser que se sente mais segura e altiva. E isso, pelo que me recordo, ela sempre foi. Em parte, posturas e trejeitos herdados do meu sogro, carreira militar, hoje aposentado, que a criou e ao irmão dela com as coisas certas da vida: disciplina, determinação, honra e coragem. Mesmo assim, ela se casou comigo.

… para David Hume, a vida é muito mais regida pelo acaso do que por nossas decisões – o que nos leva a concluir que ela não deve ser levada muito a sério…

Como disse, eu não enxergava a Joss como alguém especial. Não mesmo. Mas passei a vê-la assim a partir desse dia. Esse dia. As estações vinham se mostrando imprevisíveis. Uma frente fria invadira a cidade desde a véspera, em meio ao verão esperado, dessas que fazem as pessoas sem assunto dizer que o tempo está ficando louco e que o mundo deve estar no fim. Esse dia. O dia em que eu a encontrei por acaso, no ponto de ônibus, a dois quarteirões do consultório. Esse dia. Passei a percebê-la, a pensar nela. E isso só foi crescendo, depois, a cada dia a partir de então, só foi piorando. Ela é uma menina bonita, um pouco baixa, pequena, covinhas ao lado do sorriso. As gengivas superiores sempre aparecem um pouco quando ela sorri. (Depois, na cama, eu não me cansava de dizer a ela de como era linda. Como você é linda… Como é linda essa menina… Não sou menina, bobo, já tenho vinte e três, tô ficando veia… – sorriso de covinhas e gengivas.) Mas nesse dia não, ela não estava sorrindo. Até estranhei que estivesse tão triste. Ela estava triste, realmente triste. Quieta e triste. Essa era uma tarde nublada e, por nenhum motivo, eu sempre achei pensei senti que os dias nublados eram mais silenciosos. No ponto de ônibus, perto dela, uma mulher quase obesa, sentada de tal maneira que me parecia achatada, como nos efeitos especiais de algum desenho animado, e um rapaz, alto e magro, camiseta com um desenho incompreensível, de linhas brilhantes, jaqueta preta aberta, calça de brim com muitos zíperes, fumando tranquilo, demonstrando neutralidade. Mas eu notei que ele observava tudo ali com permanente atenção, e seus olhos quase se fechavam, a meio caminho de pálpebras. Dava um pouco de medo olhar muito para ele. A Joss estava ali, entre esses dois. Ei. Eu me dirigi a ela, curvando-me um pouco, apenas isso, sem estender a mão ou iniciar qualquer outro gesto para cumprimentá-la. Ela me viu, retornou. Ei. Estranhei que estivesse esperando um ônibus àquela hora, deviam ser umas três da tarde, expediente pela metade, como dizem os burocratas. Eu tinha acabado de sair de uma sessão com o doutor Stabile, geralmente percorria aquele trecho a pé, deixava o carro a umas cinco quadras do consultório, prefiro assim, gosto de andar e também gosto de não ficar forçando estacionar em locais muito disputados. O doutor Stabile foi quem abriu a porta, gesto simpático, convidando a entrar, e antes que eu perguntasse alguma coisa, adiantou que estava sozinho nesse dia. Vamos entrar, por favor. A moça não está aí hoje. Ah, sei. Dá licença. É que a Joss Stone tinha sido demitida.

… mas Hume também ressalta a influência de nosso temperamento nessas mesmas decisões, à parte as tendências de qualquer ordem geral, coletiva. Isso me fez associar essa ideia àqueles versos de Byron, em que o eu lírico moldava, por sua própria vontade, os riscos que o acaso lhe havia poupado…

Eu não queria que isso acontecesse. Não pensava em ter uma amante. Nem essa palavra fazia parte de meu universo-mundo-bairro. Não queria ser o adúltero, o marido infiel, não procurei por isso. Penso na Marjorie, em seus olhinhos negros e vívidos, e em como, apesar de toda a sua inteligência toda a sua astúcia toda a sua vigilância natural com as coisas, ela não desconfia de nada. Porque, como eu disse, não sou do tipo mulherengo caçador sedutor azarador, não sou mesmo, por isso é muito compreensível que ela não desconfie de mim. De nenhuma mudança em mim. De nenhuma eventual necessidade que eu possa vir a ter nesse sentido, de me sentir atraído por outra mulher, além do normal.

… um estudo mostra que a atração sexual é mais importante nas escolhas de parceiros extraconjugais do que na escolha dos próprios cônjuges. Faz sentido, porque envolve riscos. Tem que valer a pena…

O que aconteceu foi motivado por uma confluência de sentimentos fortes contraditórios ansiosos desafiadores. Eu estava há quase dois meses sem trabalhar. Seis semanas e pouco, uns cinquenta dias, algo assim. (Não gosto de fazer essas contas.) O fato é que eu ainda assimilava essa condição malograda, aparentemente sem solução em um futuro próximo, quando a Joss aceitou carona até sua casa.

Uma situação muito simples, muito trivial, à luz do dia: oferecer carona a alguém que eu já conhecia e que esperava um ônibus urbano naquela tarde cinzenta. Ela foi me guiando até seu bairro, até seu apartamento de abelha. No percurso, nós dois, tímidos, iniciávamos um assunto qualquer que logo se encerrava, sumindo entre as claridades alternadas que atravessavam os vidros do carro, sob as árvores das avenidas próximas. Eu queria falar do céu fechado e das nuvens que não esperávamos, das coisas assim, que não sabemos muito bem, mas achei que isso soaria um pouco esquisito com uma estranha. Então lembrei e falei que naquela semana o governo iria anunciar uma reforma fiscal. Ela começou a chorar. Eu quase chorei também, de susto, porque já estava tenso e um pouco desorientado. Em vez disso, tive apenas a sensação de que o sangue me pressionava a garganta, corria com força por todo o corpo, tornando-me superaquecido e vulnerável. Fiquei firme. Prestava atenção ao volante, ao trânsito. Se eu puder ajudar, por favor, me fale. Se eu souber de alguma coisa, eu… Pode deixar, brigada. Brigada mesmo. Suspirou, como se gaguejasse, contendo as lágrimas. Eu me desviava da direção, em rápidos intervalos, só para observar disfarçadamente seu nariz pequeno, seu queixo bem delineado, como só os mais jovens têm. Compreendi que a admirava. Que minha vontade de estender essa visão e esses minutos era natural legítima sincera real. Que algo muito forte e belo era olhar seu rosto recuperado daquele pranto avulso. Não sei por quê. Mas sei que, por causa de uma primeira imagem significativa que tenho de alguém, como dessa primeira visão atenta que eu fazia dela, pode acontecer de essa pessoa tornar-se, sim, só por causa disso, especial para mim. E como resultado de outro arranjo diabólico, eu tinha acabado de ouvir do doutor Stabile que deveria ser mais decidido em meus propósitos, mesmo que não os identificasse perfeitamente. Mesmo que não contasse com um objetivo claro. Enfim, de qualquer forma, exercitar isso, envidar esforços para reconhecer e alcançar qualquer coisa que me atraísse, em suma, lutar por minha felicidade. Péssimo conselho, pelo visto. Um horror. Pondo-me a caminho da desgraça pelada.

… ninguém nunca vai admitir, entre suas convicções e ideais, que a felicidade possa estar tão fortemente associada ao sexo. Mas está sim…

Voltando ao ponto de ônibus, voltando à Joss Stone ali sentada quieta triste nublada, na verdade eu quase passei por ela, distraído. Ergui a cabeça quase sem motivo e num instante eu a identifiquei. Teria quase passado por ela, sem mesmo me dar conta de que havia pessoas ali, esperando um ônibus. Teria passado então por uma porção de coisas. Teria passado por minha oportunidade de tê-la conhecido melhor. Por minha confusão sentimental e sexual dos próximos meses. Por minha vida desse dia em diante, agora, em parte, clandestina. Por minhas dificuldades pessoais e de relacionamento com a Marjorie, agora um pouco mais complicadas. Por minha real felicidade. Só porque ergui a cabeça num instante. Sem motivo.

Que ônibus é o seu? O Jardim Zara. O único que passa aqui. Ah… sei. Ela quase sorriu. Eu não sabia nada de ônibus. Naquele momento, parecia evidente que nos olhávamos de alto a baixo. Não sei. Que nos olhávamos de frente, pelo menos, por mais tempo, isso sim. Ela usava uma de suas blusinhas de alça, escondida por uma jaqueta marrom. Calça jeans justa em suas pernas curtas e bonitas. Mocassins claros, com franjinhas, do tamanho exato de seus pés. Eu sabia seu nome, mas contava, para mim mesmo, que aquela era a Joss Stone. A irmã mais nova dela. Ela própria há alguns anos. Ela, à minha frente, com seus cabelos de areia sua pele de areia seus olhos de areia – íris talvez cor daqueles biscoitos escuros de mel, essa cor instável e mutante que leva muitos a definir olhos assim simplesmente como castanhos. Minha imaginação não tem importância, por isso não tem limites: acontece num instante a perspectiva de me agarrar a alguém e me aventurar e me apaixonar, um lance apenas imaginário, evidentemente, que alguma convergência cativante potencializa – mesmo que no instante seguinte eu classifique esse pensamento-sonho como patético juvenil ridículo. No mundo adulto, as paixões conduzem a destinos complicados, quase ilustrando uma jogada de má sorte, como há muito nos ensinam os contos de fadas e as sagas estendidas, repetidamente aliás, até o momento em que algum ser mítico generosamente se propõe a quebrar o encanto. Só que na realidade nunca se viram essas entidades benfeitoras, e os encantamentos podem romper-se por força do costume, do tédio ou do crime. Era um dia cinzento, como já disse, sob a frente fria. Tarde de claridade holandesa. Um dia extenso horizontal, um dia abrangente, orientado por nuvens. Eu nunca, nunca me esquecerei desse dia.

.Projeto esvanecendo-se

5. Das coisas todas – sequência

3. O sonho com a jovem calva – anterior

Guia de leitura

Imagem: Chelsea James. Lençóis pela manhã. 2007.

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