Office in a Small City por Edward Hopper

O especismo deve desaparecer

Os animais dependem de sorte […]. E nós, humanos, que dispomos de inteligência e consciência? Dependemos do quê, para mudar a sorte dos animais?
Ativistas pela causa animal
Ativistas pela causa animal

Especismo é a ideia sem nenhum fundamento de que uma espécie viva seja superior a outra e, como você já adivinhou, de que a nossa espécie, particularmente, seja a espécie superior, com direito a explorar, torturar e matar outras espécies.

Isaac B. Singer
Isaac B. Singer

O escritor Isaac Bashevis Singer, prêmio Nobel de literatura, escreveu que, para os animais, todos os humanos são nazistas. (Ele também declarou que era vegetariano não por causa de sua própria saúde, mas por causa da saúde das galinhas.)

Massacre de cabras em Santa Maria Xochixtlapico, Oaxaca (México).
Massacre de cabras em Santa Maria Xochixtlapico, Oaxaca (México)

Por causa das religiões e das tradições, milhares de animais são sacrificados, sangrados, torturados mundo afora. A espécie humana, misteriosamente, não consegue libertar-se das religiões, da fé e da ignorância, e os nossos irmãos animais pagam o preço de nossa vergonhosa mediocridade.

Não precisamos ser tão radicais. Há muitas pessoas que são vegetarianas e veganas, e essa é uma tendência que só cresce, em parte pela facilidade de comunicação e divulgação de ideias de que dispomos hoje. Mesmo quem ainda é carnívoro, pode não tratar mal os animais, ter animais em sua convivência e atuar contra os maus-tratos e barbaridades instituídas, como as touradas e as vaquejadas.

Touro agonizando para satisfazer o entusiasmo dos espectadores das touradas
Touro agonizando para satisfazer o entusiasmo dos espectadores das touradas

Resumindo, nem todos somos nazistas para os animais. Mas claro que esse pensamento tem toda razão de ser, já que o abate (e a própria criação para o abate) constitui processos semelhantes a campos de extermínio, uma rotina de mortandade, guardadas as proporções com os mais diversos horrores promovidos pelos nazistas – felizmente extintos.

Augusto dos Anjos, em um de seus célebres poemas, lembra que o animal que urra nos bosques é, com certeza, seu irmão mais velho. Pensamentos assim são pós-darwinistas, assimilados pelo fato de sermos, todos os seres vivos, resultantes de longos processos naturais ao longo de muitos milhões de anos. E o escritor tcheco Milan Kundera, em seu A insustentável leveza do ser, conclui didaticamente que a ideia bíblica de que um deus criou o homem a sua imagem e semelhança está assim consolidada porque foi escrita por um homem, não por um cavalo. Não existem animais melhores ou animais piores. Não existem a beleza e a feiura na natureza, isso são critérios nossos. Não existe a espécie superior.

Desde menino, sempre percebi em mim uma sensibilidade especial com relação aos animais. Em geral, todas as crianças são assim. Mas eu me impressionava com canções como a do assum preto e perdia o sono imaginando que alguém furasse os olhos de um passarinho só para ouvi-lo cantar mais tristemente. Eram ideias inconcebíveis para mim. Pensava, como criança: “Por que fazer isso? Já existem discos, músicas tristes…” Eram pensamentos infantis e ingênuos, mas revelavam, de alguma forma, minha posição como adulto: somos capazes de nos superar em tantas coisas, criando arte e tecnologia, e não somos capazes de nos livrar de atitudes covardes e brutais como essa?

Fico pensando sobre o que os animais diriam de nós se pudessem falar. Além da dor física, por si só algo humilhante e insuportável, muitos animais devem sentir o desamparo, a sensação de injustiça, a solidão, o medo. Eles passam por tudo isso apenas por causa de nossos caprichos. Sim, vou repetir para que não fiquem dúvidas: caprichos. Em um festival anual na China, cerca de 10 mil cães, gatos e guaxinins são esfolados vivos ou mortos a pauladas – é uma tradição, como um esporte nacional. (Já vi fotos de filhotes sendo cozidos vivos em panelas e tachos, com a cabeça para fora, olhinhos fechados, quem sabe suportando que tipo horrendo de agonia.) Não se trata de fome, obviamente. Primeiro porque, para aplacar a fome, os animais poderiam ser mortos de forma indolor, com um só golpe, por exemplo, ou alguma técnica de execução rápida e eficaz – pois o que não nos falta, aos gloriosos humanos, é técnica, tecnologia e… nosso orgulho ridículo em razão de tais conquistas. Depois porque a agricultura foi inventada há mais de cem séculos, e não é necessário comer carne para viver com saúde.

Os animais dependem de sorte: a boa sorte de caírem em mãos de quem cuida deles e lhes dá abrigo e carinho; a má sorte de caírem em mãos de quem os maltrata, tortura e mata. E nós, humanos, que dispomos de inteligência e consciência? Dependemos do quê, para mudar a sorte dos animais?

À direita, cão esfolado vivo, na China, para que sua pele saia mais úmida. Isso também e feito com gatos e guaxinins. Essas peles são vendidas para o mercado da moda e para fazer pulseiras de relógios. Made in China. Mais barato. Ninguém se importa, é claro.
Quem somos nós para os animais? E para nós mesmos?

(À direita, cão esfolado vivo, na China, para que sua pele saia mais úmida. Isso também e feito com gatos e guaxinins. Essas peles são vendidas para o mercado da moda e para fazer pulseiras de relógios. Made in China. Mais barato. Ninguém se importa, é claro.)

Nós, humanos, sabemos que os animais são receptivos às nossas ações. Por causa de nossa superioridade do ponto de vista cognitivo e de nossa capacidade de domínio sobre as outras espécies, nossa responsabilidade é total, e todas as nossas ações devem ser guiadas pela bondade.

Claro que não é justo nem menos cruel praticar essas atrocidades tendo como vítima qualquer espécie animal, mas quando se trata de cães, particularmente, minha indignação se torna insuportável, porque eles são, instintivamente, fiéis a nós, com grande capacidade para perdoar, e acabam tristemente torturados, ainda conscientes, percebendo, além de todo o sofrimento que lhes é imposto, a execrável capacidade humana de traição contra aqueles que lhes são tão sinceramente dedicados.

E como eu meu autoconsolava? Imaginando que, ao fim do dia, todos aqueles animais sadicamente torturados já estariam mortos e livres da dor? O que mais eu podia pensar para acalmar a mim mesmo? No fundo, nada disso nunca foi suficiente. O que podia levantar meu ânimo era a atitude, a atividade, a luta para mudar isso, caindo no clichê muito útil e inspirador que era fazer deste mundo um mundo melhor.

Os que sofreram e morreram não existem mais. A dor acabou. Mas o que me pergunto é se conseguiremos, com nossa assumida e decantada inteligência, deter a nós mesmos quando falamos em praticar maldades. Novos sofrimentos estendidos ao futuro. Aos que nem nasceram ainda.

Especismo Rachel CarsonNas palavras de Rachel Carson, bióloga norte-americana, “até que tenhamos coragem de reconhecer a crueldade pelo que ela é, seja a vítima um animal humano ou não humano, não podemos esperar que as coisas melhorem neste mundo. Não podemos ter paz vivendo entre homens cujos corações se deleitam em matar criaturas vivas.”.

Quando nos comparamos pejorativamente aos animais, estamos sendo injustos – ser sujo como um porco, teimoso como uma mula, bronco como um gorila… Os outros animais não possuem nossa consciência sofisticada, são inocentes, naturais, como não poderiam deixar de ser. Um porco não é sujo sob seu próprio critério; uma besta, um jumento, uma mula têm razão em ser teimosos, pois estão sendo escravizados; e os gorilas são dóceis, como já é comprovado (além de inteligentes e curiosos). Já passou da hora de enxergar nossa posição no planeta, de enxergar a nós mesmos. Afinal, não somos nós a espécie que possui essa tal consciência sofisticada?

Eu acredito que as novas gerações terão vergonha de nós. Espero que elas não nos respeitem, que elas eliminem todas as maldades desnecessárias que cultivamos e praticamos hoje.

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Dica: assista ao filme Terráqueos (Earthlings), documentário de 2005, narrado por Joaquin Phoenix, ator engajado na causa animal.

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Comentários

4 respostas para “O especismo deve desaparecer”

  1. Avatar de Arthur Virmond de Lacerda Neto

    O Positivismo de Augusto Comte foi pioneiro, em 1840, na consideração dos animais como irmãos dos homens e na formulação do conceito de deveres da Humanidde para com eles.
    https://positivismodeacomte.wordpress.com/2011/12/14/o-positivismo-os-animais-a-hipofagia-e-as-touradas/

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Verdade, Arthur. Outros, como Schopenhauer e Tolstói, também tinham essa visão. Ainda no século 19, já percebiam, já entendiam isso. É a manifestação da inteligência.

  2. Avatar de Perce Polegatto

    Francine, eu uso o pouco que tenho – os meios de divulgação, um trabalho de palavras, o texto – para tentar alcançar o maior número de pessoas. Você cita seu vegetarianismo e a reação de alguns. Mas o mundo muda, o mundo sempre mudou. O que parecia impossível em um passado relativamente recente, hoje é bem aceito pela sociedade humana. Em meu otimismo, tenho certeza de que touradas e outras atrocidades do tipo, inclusive o abate dos animais, serão coisas do passado. A consciência é um caminho sem volta.

  3. Avatar de Francine Martin
    Francine Martin

    Perfeito!!! Seu texto deveria ser exposto a mais pessoas… porque sinto que a crueldade que é praticada com animais é muito mal explorada, ninguém fala sobre isso.
    Claro que existem muitas pessoas que tem consciência disso, mas também existem outras que não tem.
    Lembro que quando eu dizia que era vegetariana há alguns anos atrás, meus amigos achavam careta, o bacana era comer carne, hoje em dia muitos deles já são.
    Quanto maior a violência, o fanatismo, mais sem informação esse ser humano é, pois o conhecimento leva ao altruísmo, a saber amar o próximo, seja ele animal racional ou o “irracional”.

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