Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Cintilações que não podem ser

Ela estava me contando coisas de suas experiências nas ilhas britânicas, onde tudo parecia ser melhor do que o que temos por aqui, pelo visto.
Duvido. Não existem lugares sem tristezas.

Natalia Goncharova. A floresta verde e amarela. 1912.Nosso casamento era afetado por coisas pequenas, que a Marjorie invariavelmente exagerava. As crises recentes da humanidade não eram páreo para ela. Os mínimos acontecimentos próximos, envolvendo gente até pouco conhecida, adquiriam um tom de relevância localizada, pretendendo irradiar reações de espanto que supostamente afetariam minha atenção. Com isso, ao constatar e relatar crises alheias, ela parecia renovar um certo grau de poder – algo como aqueles que paradoxalmente se sentem mais certos e seguros, até mesmo bem-sucedidos, em saber de cada um que morre. Ela seria uma inimiga disciplinada obsessiva implacável, do tipo que deflagra questões judiciais permanentes e ruinosas.

Numa das noites alegres na casa da Maga, houve uma vez em que a Queen e eu estávamos conversando, de pé, perto da porta larga da varanda, por onde entravam e saíam nossos amigos, nossos menos amigos e uns amigos mais ou menos exclusivos da Maga. Era verão. Tudo ao ar livre parecia melhor. Nós ali, entre a saída lateral da casa e o espaço da piscina, entre um ambiente e outro, sem pensar em nada disso, é claro. Uns falando alguma coisa com a gente enquanto saíam e voltavam, outros passando reto, entre brincadeiras mal identificadas e outros interesses imediatos. Eu segurava meu uísque, ela sua cuba-libre. A Queen era Lucianne, Lucianne Bracchio Malverti. Filha de um empreiteiro. Com intercâmbio, tinha morado um ano na Inglaterra (mas não em Londres), e foi assim que ganhou esse apelido meio irônico meio prático meio feminino meio patético, enquanto ainda estava lá, nas ilhas, sob o frio e a chuva norte-europeus. Ela tem cabelos castanhos muito lisos, desses que um vento desmancha completamente, mas que também se reorganizam completamente em seguida, caindo sempre na vertical. Não são longos. Tocam seus ombros, no máximo. Nessa noite, ela se mostrava em uma camisa branca solta até os quadris, calças azul-marinho justas, desenhando acompanhando revelando suas pernas esguias, e umas sapatilhas creme claras cor de sua pele. A Queen é de um rosto estreito, nariz fino, queixo pequeno. Por isso, quando sorri, todo esse arranjo se reposiciona, equilibrando-se agradavelmente, e então ela parece ser a mulher mais linda do mundo. Uma mocinha simpática, é assim que ela se faz socialmente fingidamente inocentemente em festas como aquela, entre nós. Umas conhecidas já disseram que não se pode e não se deve confiar muito nela. Não sei por quê. Nunca perguntei nada a alguém sobre isso, nem ao Alex nem ao Victor… Nem sei se a Marjorie sabe disso. Não importa.

Chega uma hora, nesses encontros, em que todos nós estamos ao mesmo tempo descontraídos pelo álcool, pelas vodcas e caipirinhas, pelos vermutes e uísques, e é por isso mesmo que fazemos festas. (Fora isso, alguns ali eram dipsômanos mesmo.) Um vento fresco, próprio do verão, soprava por entre os coqueirinhos do muro lateral da Maga enquanto eu confessava à Queen umas coisas da infância, ligadas à Escócia, que eu encontrava em álbuns de figurinhas e ilustrações de livros, que tanto me fascinavam desde sempre – isso porque ela estava me contando coisas de suas experiências nas ilhas britânicas, onde tudo parecia ser melhor do que o que temos por aqui, pelo visto. Duvido. Não existem lugares sem tristezas. Mas o fato é que nessa noite ela usava um rímel azulado, que sempre ficava bem com sua cor de pele e de cabelos, e nossa conversa estava muito, muito gostosa. Só isso. Mais nada. Mesmo considerando-se, a bem da verdade, um quantum de vaidade recíproca emanando entre nós, instigada por nós, fornecida por certas latências de nosso psiquismo natural, enfim… Só isso. Mais nada.

Eu dirigia na volta. A Marjorie parecia lúcida e sóbria em seu mau humor, quando lembrou o tempo que eu permanecera ali, de pé, conversando à toa com a Lucianne-Queen. Foi ridículo, todo mundo viu! Viu o quê, Marje? Viu o quê? Vocês estavam encantados. Apaixonados. Não paravam de olhar um para o outro, todo mundo viu. (O importante para a Marje não é propriamente o fato de estarmos apaixonados, eu e a Queen, o que era absurdo, pelo menos de minha parte. O importante é se alguém viu ou não viu.) Eu também não estava de melhor humor ao volante. Voltávamos para casa, rodovia entediante, quase deserta. Marje, que história é essa? Ela olhava para a frente, para a estrada em perspectiva, pelo jeito. Ah, que história é essa, sei! Preciso dizer? Preciso? Fiquei quieto. Sabia que ela tinha razão, que a Queen e eu, em um daqueles momentos não planejados, aqueles acasos circunstanciais e mágicos, caímos um pouco encantados sim, eu senti que tentava agradá-la, brisa no verão, uísque e cuba-libre, tentava mesmo agradá-la, e sorríamos entre amenidades, olhando brilhantemente radiosamente cintilantemente nos olhos um do outro, enquanto eu contava a ela de meu fascínio pela Escócia – claro, aproveitando o pretexto da coisa toda da Inglaterra. A Marjorie resmungou. Fascínio pela Escócia, nossa, que coisa mais infantil!

Todos nós acabávamos cansados, como de hábito, sempre que deixávamos um desses encontros na casa da Maga. A Marje poderia relaxar, cochilar um pouco no carro, chegar em casa e esquecer-se na cama, como eu também só queria mergulhar no sono. Afinal, a Queen era uma das muitas pessoas de nossa convivência, eu não queria nada com ela, e acredito que ela também não pretendia nada comigo. Foi só um daqueles momentos singulares, noite morna, álcool no sangue, alinhamento de planetas. Só isso. Um homem e uma mulher se desconectam do ambiente ao redor e deixam florescer o que há de mais natural instintivo hormonal intuitivo, com a cumplicidade silenciosa da noite aberta. Cúmplices, cumplicidade. Era esse o problema. Todo mundo viu. E uma impressão cinzenta de que até esses mínimos acontecimentos são proibitivos e podem ser duramente punidos. Eu sei, claro, pelo fato de eu ser casado. Sei também que é pelo potencial de desdobramento de um desses rituais atávicos que vão se consolidando na troca de olhares e agrados e conversas, com ou sem intenções premeditadas, ingenuidades à parte e malícias também à parte. A natureza é nossa mãe austera, aceitemos ou não esse subterfúgio. E nós nos atraímos uns pelos outros, além de uma sorte de fatores complexos, também por isso, para acasalar.

Não falei com a Marjorie, não nos falamos desde a última saída da rodovia em direção a nossa casa. Não, eu não queria mesmo mais nada além de me entregar ao silêncio e ao alheamento do reino dos sonos cansados. Mas antes de adormecer rapidamente confortavelmente indefensavelmente, vencido por mim mesmo, vi com surpreendente nitidez os olhos castanhos da Queen e seu rímel azul.

Projeto esvanecendo-se

14. Maga – sequência

12. Uma coisa tão simples – anterior

Guia de leitura

Imagem: Natalia Goncharova. A floresta verde e amarela (detalhe central). 1912.

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Comentários

Uma resposta para “Projeto esvanecendo-se. Cintilações que não podem ser”

  1. Avatar de Elisângela
    Elisângela

    Muito bom, adorei ler seu belo texto.

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