Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Uma coisa tão simples

Eu não tinha pressa, mas não queria ficar ali, escutando arengas.
Detesto encontrar esses ex-colegas pelo motivo simples de que são todos uns chatos.

carl-spitzweg-o-hipocondriaco-detalhe-inferior-1865Quando fui convocado para esse encontro-conversa-cilada (um e-mail da secretaria relacionada ao Wellington), era inevitável suspeitar que algo assim, como o fim de meus dias por lá, fosse a pauta principal. Misteriosamente, subsistiu em mim, até uma boa altura da conversa, um ranço de surpresa. É mais ou menos quando não se quer acreditar que um boato idiota somado a uma situação idiota gerando uma burocracia idiota possa chegar a um ponto tão delimitado e drástico, sem retorno. Mas era a agenda de final de ano, o cardápio do dia. A pauta era eu. E fim.

Ano passado, bem perto, poucos meses, penso que em agosto, encontrei por acaso um colega de outros tempos, o Jorginho Vecchi. Nós dois trabalhamos juntos, nossos vinte, vinte e um anos, nessa mesma empresa que foi comprada por outra, depois por outra, e hoje não existe mais. Nos primeiros anos após essas negociatas e fusões, era comum encontrar ex-colegas que criticavam, ressentidos, o desfecho infeliz daquelas tramoias todas. Quanto a mim, não tinha a menor vontade de ficar ouvindo pontuações nostálgicas e lamentações nevrálgicas que não serviam para nada, além das condicionais fantasiosas garantindo que, se tivesse sido feito assim ou assado ou frito ou cozido, toda a história teria sido diferente, portanto nós todos, afinal de contas… – e patati patatá pataquá. Só que o passado não existe. Por algum motivo misterioso, meus colegas parecem não saber disso. E que ironia encontrar esse meu semelhante numa agência bancária em frente à velha esquina em questão. Eu não tinha pressa, mas não queria ficar ali, escutando arengas. Detesto encontrar esses ex-colegas pelo motivo simples de que são todos uns chatos. O Jorginho ficou ali, de pé, sorrisinho triste, olhando tudo, lembrando coisas. Então, em algum momento, eu o interrompi. Não fique aqui, Jorge. Não volte aqui. Esta esquina não existe mais. Ele sorriu, levemente desconcertado surpreso decepcionado comigo, talvez duvidando de minha lucidez. Que isso? Do que é que você está falando? Fiz um movimento com o braço direito, algo parecido com o gesto que ilustrou para a Adelaide meu alívio naquele último dia na universidade, no corredor da saída, antes da última porta transparente, estendendo o gesto para a esquina toda, sugerindo um elegante giro panorâmico. Esta esquina, está vendo, não existe mais. Entendeu? Nosso passado acabou. Não volte mais aqui. Ele sorriu, manteve o sorriso fixo tímido nervoso, me olhando de frente. Ele é um desses caras que costumam ficar muito tempo sem piscar, é o natural dele. Balançou levemente a cabeça. Nosso passado não existe, Jorge. Aquela empresa não existe mais, esta esquina não existe mais. E… olha, eu tenho que ir. Bati de leve em seu ombro. Não volte, não venha mais aqui. Ele não entendeu, eu vi. Não entendeu uma coisa tão simples.

Que não existe vida no passado. Que não existe vida na véspera, no dia anterior – tudo o que aconteceu nesse dia desapareceu. Que não existe vida alguma na semana passada. Nem no século passado. Por isso o presente é tenso, diluído em nosso sangue: só no presente é que as coisas podem acontecer – daí seu estado de tensão natural. O futuro não pode mesmo existir, que é uma projeção flutuante. E o passado já transcorreu todo: por isso, também, não temos medo da guilhotina nem das invasões vikings nem da Igreja Católica – porque estão no extinto passado, não podem mais nos alcançar. Personagens míticos, como Abraão, ou pessoas reais, como Cleópatra, estão guardados nos livros: não existem mais. Ninguém pode viver no passado. Absolutamente ninguém. Muito menos no futuro. Ninguém pode viver fora do presente.

… a eternidade não é um tempo longo, fora de nós, que um dia iremos encontrar. Ela é o tempo único de nossa consciência hoje. Ela é o tempo todo que transcorre. Não existe vida no passado, e todos sabem disso. Mas é preciso exercitar essa constatação para que não fique comprometida nossa lucidez…

Lembrar recordar conversar sobre o passado não tem nada de insano. Nem é triste nem é aborrecido nem é perigoso para aqueles que já se justificaram de maneira consciente. Mas ficar remontando situações que poderiam ter sido de um jeito e não de outro, lamentando vértices e bifurcações, é uma bobagem ociosa, já que não podemos voltar à noite de ontem para mover um objeto de lugar ou tomar o café esquecido ao lado do sofá. O abismo sob nosso ilusório senso de conexão com o mundo – mais que um abismo, uma impossibilidade gritando no vazio. Se alguém descobrir hoje, terça-feira, algo sobre meu caso com a Josie, o que se compromete é o meu presente, não o meu passado. E se ninguém nunca souber de nada, meu passado continua intacto, meu presente imaculado e meu futuro limpo. Não sou inocente, como já disse. Claro que não. Mas o fato é que a consciência de uma situação faz reescrever a história, rever o tempo desperdiçado, como sempre extinto, e pode destruir alguém em um futuro bem próximo. Não sei. Não sei ao certo. Pode ser que nunca aconteça nada.

E quando vivem certos dilemas, acende-se também uma pista estreita oblíqua atrativa que me devolve ao passado, talvez porque os problemas que eu mesmo criaria no futuro evidentemente não haviam sido criados ainda. Eu era jovem, desastrado. Tinha heróis. E todos eles apontavam armas, nos cartazes dos filmes. Pareciam estar sempre bravos com a gente. Às vezes, uma mocinha, meio de lado, apegada a um deles, também se fazia muito brava linda feroz. Estavam todos sempre bravos com alguma coisa. Eu queria ter uma arma daquelas, da mesma forma como queria ter uma guitarra ou uma moto – assim como muitos queriam mostrar que sabiam fumar ou tinham orgulho de saber dirigir um carro, ou alguma outra tolice semelhante. E falando em semelhante, eu era tão idiota quanto meus colegas e amigos da mesma idade. Tolescentes: invulneráveis vulneráveis. Desejando armas. Um contrabandista do bairro nos mostrava e oferecia essas maravilhas perigosas. Nenhum de nós tinha dinheiro para perder com aquilo. Mas eu me pensava armado, vagando pelo Centro Velho, sob a chuva, minha capa impermeável e meu relógio negro da Texas Instruments, quanto mais gente assistindo, melhor – embora ninguém pudesse adivinhar se eu portava ou não uma pistola automática escondida, por baixo da capa. Era tudo ridículo. Para o bem de todos, esses anos jovens antigos desapareceram. (Ao longo do tempo, todas as fases de nossas vidas serão extintas, definitivamente, também para o bem de todos e ainda bem.) Mais tarde, passei a ter aversão a teatros espetáculos encenações, a tudo de que os primatas humanos necessitam para contar uns aos outros do que fazem o tempo todo, desde os anfiteatros gregos até os musicais da Broadway. Que bando de idiotas vaidosos… – eram eu, com minha capa de chuva.

Só tive a sorte de ter saltado, por impulso e por curiosidade, e me agarrado ao trem da literatura, que passava entre os campos de ervas rasteiras de meus dias jovens e me transportava para longe dessas tolices medíocres e efêmeras das quais, sem perceber, eu era agente representante e refém. Eram novos perigos agora.

Cético, mas foi assim que lhe aconteceu a Josie, quase ao acaso, sua Joss Stone provinciana, provinda da mitologia das mídias e da música, e hoje ela é uma das coisas que-você-mais-tem. Depois, sim, entra em campo um pouco de todos os gestos intencionais, a começar por você e ela, pela opção velada de se desejarem quietos, que só vocês podiam dar conta de lidar com o acaso e construir-lhe uma continuidade, arranjada entre camuflagens e riscos. O de sempre. Nada de novo no front ocidental. E você, que já leu e se instruiu sobre personagens masculinos capturados pela tentação sexual, traço tão comum aos homens de todos os povos, dominados por dem… – eu ia dizer hormônios, claro, isso então – hormônios efervescentes que os lançam às voltas contra um sistema de questionamentos morais éticos psicológicos, enfim, tudo que se segue às exigências do desejo sexual, cuja variação de intensidade pode produzir, em alguns casos, formas obsedantes de loucura, aí está você, você sim, diante de um futuro improdutivo, contado em horas e dias, trocando e-mails nervosos com essa garota solitária, entre ereções e oleosidade, imaginando abraçá-la com a força inocente de um predador. Mas, pelo jeito e ao que tudo indica, está tudo certo, não é mesmo? – uma vez que você é um homem como todos os outros. De todos os povos. De todos os tempos. Uma vez que… Era uma vez um homem que… mesmo amestrado pelos processos civilizatórios e sem problemas quanto a isso, ainda assim amava capturar e deitar por cama sua ninfa de estimação.

… um suspiro de susto um gritinho rápido e alegre ao ser atacada derrubada submetida…

Não consigo imaginar o desfecho disso tudo, porque eu não queria que algo assim começasse, minhas visitas ansiosas ao apartamento estreito e aconchegante da Josie e tudo que engendrava essas pobres ousadias, na realidade tão comuns. Pensei que não quisesse continuar me encontrando com ela. Pensei também que ela não iria querer continuar se encontrando comigo. Depois entendi que a desejava a cada nova semana, conforme os dias secretos me encobriam, conforme as tardes de sua pele e de seu corpinho consistente me impeliam sempre mais, em direção ao desastre.

… Sartre mencionava Van Gogh e Gauguin com uma pincelada de inveja e reverência, porque esses artistas pagaram o preço, assumiram seu destino e encontraram a si mesmos. Um desafio e uma afronta à racionalidade enraizada. Mas o pensador também entende que, para encontrar a autenticidade, é preciso que alguma coisa entre em colapso. E é assim que funciona minha decantada digressão, caso alguém necessite de um exemplo: como um processo de associações inevitáveis. Não pensei diretamente nos pós-impressionistas ou no existencialista, mas na Josie e em minha natureza, na possibilidade real de um status de gratificação pessoal – com o custo de um colapso…

Por fim projetei as possibilidades de um escândalo ou de um completo alheamento, que não deixaria ossos ou fósseis para registros futuros. Mas eu não tinha certeza de nada. E não conseguia me decidir. Ela já ocupava meu pensamento com arrepiante intermitência. Projetada em meu espaço cotidiano vivo, instalada entre circuitos neuronais que a cristalizavam. Ela já estava em mim. Isso foi em março.

… Henry Miller sintetizava que, para um homem apaixonado, a pior hora era às três da manhã. Mas eu não me acreditava apaixonado, embora perdesse o sono por uma soma considerável de motivos, inclusive levando a sério as propostas avariadas da civilização, das sociedades humanas…

Eu e a Marjorie não éramos mais os mesmos. O que nos distanciava agora, disso eu tinha certeza, era minha atual condição de homem ocioso e não muito proativo quanto a tentar ultrapassar essa estagnação que me afetava e entorpecia como acontece quando somos acometidos de alguma febre tropical, porém sem nenhum sintoma físico. Sei que a Marje deve ter pensado em muitas saídas, arquitetado algum plano de emergência, mas ela não me contava. Eu percebia todas as suas insinuações, mas dissimulava, deixava que ela me visse com a melhor imagem que costumava fazer de seu cônjuge: um ingênuo distraído, capaz de tropeçar e cair a qualquer momento. Talvez esperasse que a iniciativa partisse de mim. Mas não partia. Meu ritmo havia declinado, estava em descompasso com o dela. Minha força de vontade me traía, não era mais uma daquelas coisas que-eu-mais-tinha. Um doente fingido, aparentando aceitar de bom grado as medicações. No fundo, não fazia esforço algum para me curar. Ao contrário, sentia a necessidade de ficar algum tempo internado, com a desculpa de não poder sair da cama. Não queria ter alta. Queria continuar fingindo. Mas essa atitude escapista não era resultado da desonestidade ou de alguma estratégia maliciosa. Eu estava realmente exausto. Esgotado mesmo. Recuperando-me de muitos anos de assiduidade e dedicação. Revendo a utilidade de tudo quanto havia feito. Manuseando cinco seis sete vezes um mesmo papel com alguma anotação minha, para depois deixá-lo no mesmo ou em outro lugar, displicentemente ao acaso, sem qualquer conclusão definida. Revolvendo a areia molhada com um graveto. Engolindo a saliva seca. Desmoronando.

A Marjorie, pelo jeito, não percebia nada disso. Ou percebia e também fingia. E eu, em vez de lhe dizer, com todas as letras, o que estava sentindo e vivendo e pensando, evitava o confronto. Tinha medo de sua reação, de suas respostas sempre pragmáticas práticas funcionais, algo que pode piorar os nervos de quem já não dispõe de forças para conversar muito, imagine-se para dar um único passo em busca de alguma nova colocação profissional. (O que eu tinha a dizer acabou sendo, gradual e sinceramente, direcionado à Josie, às minhas conversas com ela, em sua cama estreita – ela me libertava sem saber sem pretender que fosse assim, mas o fato é que era assim.) No mais, considerando-se uma ou outra ocasião em que eu me percebia falando sozinho, ainda assim em voz baixa, persistia a sensação dostoievskiana de falar calado, de viver dentro de si mesmo tragédias inteiras calado, a ponto de especializar-me nisso. Ou então… Nem sei mais.

Por vezes, a Marjorie encerrava um diálogo simulando tédio, um gesto muito, mas muito suave, um suspiro elegante e medido, enquanto dizia educadamente, em tom ameno: eu estou cansada de falar. Eu quase me sentia assim, amplamente, em relação a mim mesmo. Eu quase poderia imitá-la, adaptando essa sua atitude típica a tudo que me desanimava me desfocava e me fazia esgotado, eu que não encontrava mais forças para voltar às salas de aula ou para acreditar na honestidade humana ou para resistir a uma jovem amante despreocupada. Ou mesmo para conversar com minha própria esposa, essa que terminava os diálogos com seu estou-cansada-de-falar – mas não enfática não irritada não hiperbólica, literal mesmo, lenta e olhar ausente. Meu bem, depois a gente conversa, tudo bem? Mão na testa, inclinando o rosto. Eu estou cansada de falar. Essa atitude sempre interrompia algo de meu discurso, no momento em que eu me fazia mais excitado e prolixo. Sim, e talvez por isso mesmo. Meu entusiasmo fora de hora a incomodava, eu via. As coisas que tanto me espantavam e me encantavam não interessavam muito a ela. Apenas não lhe interessavam.

Projeto esvanecendo-se

13. Cintilações que não podem ser – sequência

11. Um último aceno por nada – anterior

Guia de leitura

Imagem: Carl Spitzweg. O hipocondríaco (detalhe inferior). 1865.

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