Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Casinha de gengibre e os ventos seguintes

O rodo lhe servia como um cajado, um cetro.
Deixou-se cair sentada, uma das mãos cobrindo o rosto enquanto chorava.

chelsea-james-tanque-2-2009-1Nos primeiros anos de casados, não tínhamos empregada doméstica. Nos fins de semana, dividíamos alguma faxina e tarefas que pediam nossa semana à frente. O apartamento era pequeno estreito contido, vivíamos apaixonados, e mesmo as dificuldades inevitáveis interpretavam-se mais leves, tudo era motivo de entusiasmo e bom consumo de nossas energias. Para se ter uma ideia, a pegada do sexo podia acontecer entre uma tarefa e outra, só por culpa da proximidade física – e isso, como bem sabemos os adultos, não é pouco, vamos admitir. Mas essa fase de casinha de broa de gengibre, como todas as que eu e a Marjorie vivemos, passou.

Um dia ouvi ruídos mais fortes vindos do banheiro, depois de a Marjorie ter entrado lá com balde bucha rodo sapólio sabão de coco e uns panos. Ela vinha da lavanderia, camiseta verde-clara com um nó lateral, shorts e havaianas, reclamando de umas manchas no ladrilho e em algum canto de parede. Umas pancadas. Um ritmo meio nervoso, agitado. Quase um vidro quebrado. Pact, bléim! Cheguei perto para ver. A Marjorie estava suada e um pouco suja, os cabelos presos em parte soltos desprendidos teimosos livres de uma ou outra presilha ou elástico, nem reparei direito. Então ela parou, encostou-se à parede, ainda apoiada no rodo, e foi descendo ao chão com uma careta de amargura. O rodo lhe servia como um cajado, um cetro. Deixou-se cair sentada, uma das mãos cobrindo o rosto enquanto chorava. Não era essa vida que eu queria pra mim! Não eeeera! Não era isso que eu queria pra miiiiim… Agachei à sua frente, tentei abraçá-la. Me larga! Marje… Me larga, vai. Vai! Que foi, que aconteceu? Me diz. Era melhor nem tocar nela. Apoiei a mão esquerda na parede, o outro braço solto sobre o joelho, fiquei agachado ali, olhando suas pernas com indiferença, só porque estavam próximas expostas propensas ao toque, e seus pés bonitos brancos molhados rígidos, nas havaianas tiras cor de vinho – a Marjorie sempre teve um gosto especial com essas coisas. Agora era um choro de soluços, as duas mãos cobrindo o rosto. Marje, vem comigo… Me larva, já falei! Ela disse larva, estava engasgando com as palavras, coitada. Eu achei aquilo um pouco engraçado, e por sorte ela não me viu começando um sorriso de boca presa. Você disse larva, você quer que eu te lave? Não, claro que a Marjorie não queria nada disso, e meu bom humor imprevisto, fora de contexto, só podia piorar a situação.

Chapéu de praia óculos de sol cheiro de cremes ombros livres lábios dilatados, ela me sorria. Eu a beijava, rendido. Estreitava os olhos contra o horizonte grandioso enorme longe. Ninguém interrompe o mar, essa imensidão fremente. As coisas mudam. Parecem as mesmas. Vento vivo e aves marinhas. Nada interrompe o mar. Minha camiseta suada, fácil. Minha pele mal adaptada ao verão, sempre. Não posso com o sol. Faço isso pela Marjorie, ela tem razão em muitas coisas, eu sei, precisamos viajar, ver o mar, deixar nosso lugar dos outros dias todos. E eu pensava em como era privilegiado por ter a Marje comigo, uma mulher atraente decidida forte, que misteriosamente me desejava. (E assim como sair de casa e mudar de ares pode renovar nosso impulso de vida, beijar outra boca também é importante. Só que isso não me acontecia ainda.) Mas isso de ela ter razão ou não sobre certas coisas, algo que podemos dizer sobre todo mundo, não é motivo de… motivo para… Por que eu fiquei com ela? Uma mulher bonita. Rosto anguloso, sem um grama de gordura. Olhos de amor. Sorriso plano exato fixo, em seu limite. Quando vê um animalzinho ou uma criança pequena, torna a olhar para mim, sem olhos, óculos escuros cintilantes, de alguma forma poderosos.

Fui buscar batida de coco para a Marje, caipirinha para mim. Com o rapaz da barraca, moreno manso atencioso, chapeuzinho de pescador, abas caídas: palavras trocadas. Ele olhou para fora da sombra, olhos estreitos contra o horizonte. ’sol tá queimano! Olhei também. Tá sim. Voltei com os copos altos. Hum, adoro quando chega assim, geladinha, adoro, adoro… A garotinha passa bem à nossa frente, passinhos hesitantes, pazinhas de areia, coisas em plástico verde. Olha, que fofa, que linda, não é demais? Sim, eu também acho. Sim, eu penso e digo que sim. Por que ela parece rígida, mesmo quando se rende à graça de certos momentos? É só uma impressão minha, acho. Horizonte e menos horizontes. Limites laterais da praia, litorâneos. Sol e sofrimento. Eu não queria tê-la perdido numa noite de chuva.

A praia formigava de crianças e jovens, muita coisa verde-amarela, bandanas bonés cata-ventos, era um momento em que o país vivia outro surto patriótico em busca de salvação, algo que em mim, ao contrário de inspirar esperanças e alegrias, produzia o efeito de um fenômeno anormal e aflitivo. Não saio da sombra, prefiro assim. Não posso com o sol, ninguém pode. Alguém passa ali perto, doce balanço. A Marje sempre observadora. ’moça bonita… Sim, é. Não digo nada. Soa repetitivo. É repetitivo. Quando terá sido a primeira vez que alguém se impressionou com a beleza? Intermitência de gritinhos risos sorrisos carregados pela brisa. Somos cópias genéticas, modelos e padrões que se sucedem, um absurdo processo ancestral desenvolvido à nossa revelia, entre vastas eras geológicas, até falar por meus olhos, acompanhando a densa fatia de água pesada cristalina que despenca com estrondo ali à frente, a onda de número um trilhão. Nunca esquecer Neruda: o mar intratável, o custo do silêncio. Eu, sempre evitando o sol, um homem à sombra. A sombra de um homem à sombra.

Há dois dias, nós dois a caminho: outro percurso de expectativa e ansiedade, desde que passamos o último pedágio do trecho de planalto e antes de propriamente iniciarmos a descida da serra. Agora habitantes temporários de outro espaço eterno, depois de passearmos um pouco pela orla, descíamos à praia e seguíamos descalços pela faixa molhada de areia enquanto anoitecia. Tinha sido uma tarde de tempo desagradável e úmido, os barcos amarrados balançavam no limite do mar cinzento. Ondas suaves e precisas. Podiam servir de relógio. Acompanhando nossos passos iguais. Ao longo da praia, uma barra movediça guiando nossos limites. Durante o dia anterior, por causa de uma chuva rápida mas de efeito residual, o mar parecia diluído, como se flutuasse pelo céu, sem linha de horizonte à vista, turvo e cor de oliva. As ondas se arrastavam baixas e pareciam não querer quebrar sobre si mesmas. Só perto das rochas limítrofes, um arranjo pesado fechando a praia, é que elas ainda rebentavam com força, mesmo assim com certo cansaço, deixando um rastro efervescente na volta. Fomos conhecer essas rochas no dia anterior: em uma delas, alcançando-nos com um charme específico, incrustava-se uma concha petrificada, contando do tempo. Esse giro do planeta com seus mares se repete quase idêntico, mas cada dia, com sua espantosa singularidade, assim como mais este dia, que está definhando agora, nunca mais irá se repetir. Dá vertigem olhar para trás. Um peixe do Devoniano, meu ancestral. Cinco articulações nas guelras, cinco dedos em minha mão. E eu, com minhas preocupações. Não.

Na noite anterior fomos conhecer galerias de lojas, tomamos café por ali. A Marjorie admirou uns vestidos de verão e umas sandálias. Passeamos por um trecho onde se expunham telas de artistas locais – uma e outra marinha nas quais o mar se tornava gasoso e se diluía completamente no horizonte provocaram-me um breve arrepio de solidão. Depois, a avenida da praia até seu extremo, de onde ficamos observando umas traineiras manobrando e outras coisas meio escuras de mar. Mas o cais das balsas se mostrava cinza brilhante, por causa da chuva da tarde, e o cheiro da maresia penetrava todas as brechas possíveis do amplo ambiente que nos envolvia, aquela porção de mundo que me encantava de um jeito ou de outro, entre escuridões e pontos de luz. Apertei a mão dela enquanto caminhávamos, sem dizer nada sobre o que sentia. Tudo isso faz a gente pensar que ama.

Voltamos às coisas boas e às coisas entediantes da pousada. Eu escurecia de desânimo quando avistava, num recorte arquitetônico da recepção, aquelas estantes com livros antigos e partes de enciclopédias obsoletas que naturalmente ninguém pegava a ler. Acho que toda pousada ou colônia tem uma estante dessas, lembrando que tudo passa. Fina participação da maresia, fatores oxidantes: nada é mais parecido com o tempo. No dia seguinte, senti uma sutil alteração na personalidade do mar: parecia propenso a gerar ondas menos inocentes, num resmungo incessante. Mas esses dias terminavam, e o oceano entardecendo em oliva nos convidava a uma última visita uma última vista um último voo em terra. Ar fresco, de cheiros orgânicos.

Outra vez sob o sol. Uma pessoa a distância. Depois, não. Espaço aberto, fora de nós. E esse semelhante a distância, outro eu. A ponto de não mais se saber quem é. Tempo de essa pessoa estar lá, onde estava, extinto. Todos os povos. Cada pessoa, sua distância. História de ninguém. Distância a ponto de não se saber mais quem foi. De nunca mais existir. Não podemos com o sol. A Marjorie e eu. Nós dois aqui, fortes. Que distância é essa, que nos cobrirá de ondas? Olha, que linda, como ela anda, o jeitinho dela… Passa a garotinha, bem perto. Sim, é linda. Por que eu fiquei com a Marje? Quer uma filha hoje? Porque ela consegue sistematizar a vida, e isso me passa alguma segurança? Pode ser. Porque preciso dela, eu acho. Eu me perco fácil. Acusado de digressão, lembre-se. Você perdeu muito. Pode perder tudo.

Filhos imaginados. Isso acabava suspenso, na frequência de outro espectro, para depois do depois do depois. Primeiro ela firmar-se além do estágio no escritório de advocacia, eu com número de aulas suficiente para correr o risco de perder uma ou outra coordenação entre as viradas de ano e encerramentos de semestres. Até juntarmos dinheiro: nossa própria casa nosso apartamento, quem sabe. De alguma forma, negando ou afirmando, um casal considera fazer filhos. A garotinha passeando por perto, cabelinhos finos negros soltos, eu a apontei, a Marje sorriu, pensamos ao mesmo tempo: seria nossa filhinha. Logo teria seus cabelinhos arrumados pela mãe escrupulosa e perfeccionista, talvez uma franja à sua imagem e semelhança. Pensando nisso, também nos assaltavam coisas horríveis, a doença a deficiência a morte de um filho, de uma filha. Não percebíamos a dimensão dinâmica que enrijece os pais atraiçoados pelas adversidades. À parte isso, eu pensava (mas não dizia a ninguém): cada criança que nasce encaminha a humanidade a outros cenários do planeta-tempo, a outras acepções filosóficas de mundo, a novas línguas que vão se moldando sem alarde, a novos desafios ainda inconcebíveis, novas ruínas.

Ela ficou sem falar comigo uns dias. Só o essencial, como dizem. Mas para mim isso significa só o superficial, que o essencial não é isso, não é isso de trocar informações básicas, fechou o lixo? vou chegar um pouco mais tarde, lembrou de abastecer o carro? tem que comprar pão de forma, fazer lanche hoje, a Coco Chanel, está acabando a ração dela, coisas avulsas e rotineiras por necessidade de comunicação. Casinha de gengibre e os ventos seguintes. O essencial era que essa crise de choro imprevista da Marjorie, apoiada num rodo e declinando ao desânimo, fazia dela a primeira de nós a perceber que as coisas que as nossas coisas que as estações que os ciclos que os réveillons que os brindes que as festas na Maga que os ventos haviam mudado.

Projeto esvanecendo-se

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14. Maga  – anterior

 Guia de leitura

Imagem: Chelsea James. Tanque 2. 2009.

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