Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Matéria básica e um resto de vinho

Mas ninguém nunca escapou de ser humano.
E isso significa vivenciar a matéria básica que nos compõe, com toda a força da realidade, a matéria que nos desafia com a vontade de seguir e nos constrange com a vontade de chorar.

joan-miro-bailarina-detalhe-superior-1925Diário digressivo. Aula tratando dos primeiros poemas medievais em nossa língua. Literatura. Tempo. Até o Classicismo e… Parte dos alunos desinteressada, outra boa parte propensa a desinteressar-se, porque eu começava a falar em Shakespeare. O resto é silêncio, disse Hamlet. O resto é tudo o que está fora de você. Você só tem a sua vida, a de nenhum outro. E ela é breve, como foi a de todos, em todos os tempos. Acontecendo entre um antes e um depois absurdos. Períodos de extensão quase imensurável, nos quais você não é e não está e não existe. A vida parece longa, nós nos enganamos com os minutos com o tempo calculado com as projeções para o dia seguinte. Alguns lamentarão a sua perda, quando você não estiver mais aqui, mas esses alguns também são breves. No fim, o que importa é o pensamento. Isso mesmo. Porque ele pode permanecer estender-se preservar-se. Nesse contexto, nem é importante que você cultive o seu próprio pensamento, a menos que ele esteja a serviço dessa teia invisível que une todos os tempos e todos os espaços.

Isso deve ter sido duro para ela. Não a faxina, não nossas tarefas diárias domésticas diárias, claro que não, que eu também fazia todas essas coisas, revezando os dias ou os períodos, e sempre me oferecia, sempre nos oferecíamos, agora estou pensando em todos os sentidos, sim, nós sempre nos oferecíamos, éramos unidos, sentíamos verdadeiro tesão um pelo outro, e esse tesão é o alicerce do amor, é claro que sim, todos sabem disso, como sempre foi. O que deve ter sido duro para ela foi chorar daquele jeito, na minha frente. Foi ter sido vencida por uma crise incontida de soluços engasgados, ficar caída ali, no chão molhado, entre suores e sujeiras. Isso é que deve ter sido duro para ela, caso eu não tenha dito isso ainda. Ela que sempre se fez o exemplo da disciplina, a estrela da determinação e da proatividade, cujo conhecido autocontrole era uma das qualidades que-ela-mais-tinha, talvez preferisse ter vivido esse momento de estresse convulsivo fora de minha vista, longe de mim, em segredo. Mas não se pode voltar no tempo, o acontecido está acontecido. E ninguém nunca escapou de ser humano. E isso significa vivenciar a matéria básica que nos compõe, com toda a força da realidade, a matéria que nos desafia com a vontade de seguir e nos constrange com a vontade de chorar.

Eu sei de mim e por isso sei dos outros. Tenho a simples certeza de que não sou único. E que a história de minhas dúvidas desejos segredos erros e vergonhas é uma história reciclada copiada herdada de meus ancestrais, que não é propriamente a minha história. Mesmo entre os que aparentam alguma forma de sofisticação e conduta moral de referência, as condições primárias brutas naturais de nossa humanidade prevalecem, nem que seja em forma de vírus, clandestinas e contínuas, sobre suas claras decisões de superfície.

Por que nos atraímos um dia, eu e a Marjorie? Por que nos aproximamos e nos aceitamos e nos amamos? Pelos mesmos motivos naturais e nada surpreendentes que moveram milhões e montilhões e multidões de outros como nós. Chega a ser monótono tudo isso. Agora, nove anos de vivermos juntos, olho o relógio a essa hora da tarde e verifico que não há intimidade que não tenha sido devassada. Por que tudo o que era antes não segue da mesma maneira entre tudo o que veio depois? A conquista mútua se consolidou? O desafio foi superado? E daí? Acabaram para nós as refeições que se compunham de leite, panquecas com açúcar, maçãs e nozes? Mudou o gosto das paredes de broa de gengibre ou nosso paladar foi que se subverteu com a força fraca de nossos beijos?

As coisas não mudam todas. Não são uniformes. Não seguem juntas. Não admitem previsões simples quanto à sua presumida proporção e seu ritmo de queda ao longo dos dias. Até hoje, com alguma frequência, a Marjorie se aconchega a mim na cama, deita a cabeça em meu ombro em meu peito até em meu pescoço, colando parte de seu corpo na lateral de meu corpo, deixando uma das pernas bonitas dobrada sobre minha barriga minha virilha minhas pernas mesmo. Ela tem pernas muito bonitas, muito bem proporcionadas consistentes firmes, mas palpáveis, deliciosamente palpáveis, musculosas na medida certa, sem deformações, tantas vezes significando para mim, nos momentos reais de acessá-las sob minhas mãos, o que havia de mais prazeroso no mundo. E isso sempre me cativou muito, apesar de toda pretensa intelectualidade que tenta arrastar-me para fora do animal ativo que sou, arrancando-me a pele e o cheiro de minha pele – mas não, nenhuma artificialidade conseguiu jamais mudar isso. Muitas, muitas, incontáveis vezes, ficamos juntos assim ou quase assim, com variações, unidos na cama, unidos nas receitas e nas despesas, sem receitas programadas para nosso relacionamento, sem despesas desnecessárias que desgastassem nossas conversas. Tem um resto de vinho? Eu pego.

Mas isso, como os ventos os beijos o gosto das paredes doces, não tinha mais a mesma realidade. Mesmo assim, havia uma gradação imperceptível, uma sucessão de desvios entre as semanas e as estações, algo que não se acelerava nem retrocedia. O que decisivamente mudou, eu sei, partiu de um dia específico, que se tornou, como já disse, uma noite limítrofe, e quase pode ser datado: o fim de tarde em que lhe contei como o Sydney a Adelaide e o Wellington haviam me derrotado em nome da instituição. Isso se agravou em pouco tempo quando ela passou a pressentir que eu não pretendia voltar tão cedo a me ocupar com nenhum outro trabalho. Além disso e ao mesmo tempo e enquanto esses terremotos mais ou menos significativos na escala Richter vibravam só entre nós, eu jamais, jamais pensei planejei projetei que um dia, após nove anos com a Marjorie, fosse me envolver assim com outra mulher.

… a antropóloga Helen Fisher mostrou que a dopamina conduz o animal a buscar recompensas: basicamente alimentação e sexo – e isso se estende ao prazer experimentado ao conseguir tais recompensas. Como não mais dependemos tanto assim de buscar alimentos, o sexo continua sendo nossa busca mais intensa, e o prazer se completa por si mesmo, sem perspectivas futuras que nos interessem. Além disso, a doutora Fisher entende que a primeira fase de encantamento e atração é sempre romântica. Será mesmo que eu me incluo nisso? Afinal, a Josie me preocupa. E eu não me sinto nada romântico. Quanto à dopamina, se era isso que me engasgava, misturada com a saliva…

Projeto esvanecendo-se

17. Os rapazes, os homens, a guerra – sequência

15. Casinha de gengibre e os ventos seguintes  – anterior

  Guia de leitura

Imagem: Joan Miró. Bailarina (detalhe superior). 1925.

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