Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Do que eu era

De qualquer forma, minhas falas e aulas sempre produziam algum efeito.
Eu via pelas expressões dos rostos, aparentemente neutras, mas provendo olhares atentos.

1-aldo-balding-dialogo-silencioso-1Eu me orgulhava de minhas aulas quando conheci a Marjorie. Intuía, sem declarar a ninguém, que cada aluno representava a possibilidade de continuação das ideias inquietas interessantes contidas em minha mente. Sim, uma maravilha viva. Cada um que assimilasse minha influência e compreendesse o que eu tinha a dizer estaria ajudando a mover o mundo a uma nova fase de ajustes e acertos. Processo civilizatório em andamento. Positivamente. Desenhava-se em holograma uma correia de transmissão que eu acreditava apoiar-se no vigor de minhas convicções e de minhas propostas dialéticas. Podia constatar o efeito de tudo o que dizia, tudo o que eu construía no ar. Até mesmo caminhar pela sala de aula enquanto falava, enquanto as engrenagens sofisticadas de tais abstrações giravam lentas no espaço entre nós, procedimentos simples que despertavam olhares curiosos e giros de cabeça, parecia incomum. Um professor é avaliado a todo momento, meus colegas sabem disso. Enquanto fala enquanto anda enquanto respira.

Compreensão de textos. Por que Geppetto, pai adotivo de Pinóquio, não se anima a sair da barriga da baleia? Quem não quer ser livre? Eu passava por trás das últimas carteiras, seguia devagar de volta à lousa. Será que as circunstâncias de sua vida eram maiores do que ele? A baleia não seria o conjunto de fatores que o desmotivava e o tornava acomodado apático sem esperanças? Isso só podia piorar as coisas para o menino, que se esforçava por conseguir o reconhecimento do pai, buscando ser um menino de verdade. É um momento grave, observem, em que Geppetto parece estar desistindo da vida, portanto desistindo de seu filho também. Para compreender textos, vocês precisam participar deles. Precisam levar a sério as coisas mais absurdas. Não é mesmo? Alguns se mostravam interessados. Outros pareciam abatidos, cinzentos de tédio. De qualquer forma, minhas falas e aulas sempre produziam algum efeito. Eu percebia isso pelas expressões dos rostos, aparentemente neutras, mas provendo olhares atentos. Afinal, eu os provocava a pensar em algo fora da rotina, até mesmo fora do que esperavam do curso. Momentos digressivos: que eu considerava úteis. Escutem isto. “Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de sonhos intranquilos, viu que se transformara, durante a noite, numa espécie de inseto monstruoso.” O que acontece com esse personagem é algo tão absurdo e miraculoso que nós não desejamos nem para… para… Bem, talvez o desejemos a alguns, não importa. Esses acréscimos, pretendendo ser bem-humorados, às vezes provocavam reações simpáticas – não de todos, é claro. O que nos chama a atenção é o fato de essa metamorfose ser relatada sem nenhum espanto, sem nenhuma surpresa. Nenhum ponto de exclamação. Nenhuma palavra em tom de lamento. Nenhum comentário ansioso querendo rasgar a garganta. É como se o autor nos dissesse: “Gregor Samsa despertou, sentou-se na cama e escovou os dentes.”, o que também seria curioso, isso de escovar os dentes sentado na cama, não é mesmo? Mas não, nada se compara a uma transformação deste nível: tornar-se um inseto. Ou qualquer outro animal que seja, vamos admitir, não importa a espécie. E tudo começa pela manhã, à frente de um novo dia, o que torna tudo mais terrível. A expectativa foi invertida, pois temos como noção cultural, provavelmente arquetípica, isso de comparar algo bom à luminosidade, e seu oposto. “Quando Gregor Samsa despertou…” É assim que começa o pior sonho para ele. Eu passava pela última fileira de carteiras, começava a voltar pelo mesmo caminho, o estreito central. A prosa de Kafka tem esse poder de nos direcionar a um absurdo feito algo cotidiano, como se coisas estranhas e impensáveis acontecessem normalmente ao nosso redor – o que, sob certo aspecto, é mesmo verdade. Se vocês pensarem bem, os fatos mais corriqueiros da vida podem ser vistos como absurdos. E, também, chega a parecer que não há no mundo nada tão absurdo que não possa acontecer a alguém. Há inocentes presos por toda a vida. Imaginem. Mesmo em países ditos desenvolvidos. E a Justiça, com sua monstruosa capacidade burocrática, não é suficiente para libertá-los. O próprio 11 de Setembro, com todos aqueles cidadãos comuns, uma manhã de trabalho, uma terça-feira, talvez prevendo um pouco de tédio à frente… É, eu sei, eu estava falando do pobre Gregor Samsa. (Digressão da digressão.) Sobre coisas estranhas e inusitadas acontecendo normalmente ao redor. Mas nada de casarões escuros e portas que rangem. Não. O terror se manifesta sem suspense. Sem silêncios amedrontadores. Sem sustos. Sem gritos. E seguem-se os desdobramentos desse primeiro evento, sem dúvida impossível de se realizar. Seguem-se sem ênfase, sem notas de perplexidade. O absurdo à nossa volta, a começar por nossa manhã. O pesadelo à luz do dia. Alguns alunos deixavam claro, com sua impaciência, movimentando-se na carteira, que não viam a hora de aquilo tudo acabar, de passar por aquilo tudo que eu mostrava com particular entusiasmo, e voltar a uma aula normal, isto é, sem problemas. Sem desvios para seu pragmatismo inercial, que apenas almejava um certificado ao final do curso. O Daniel interrompeu-me. Se isso é impossível, o que nós temos com isso? Impossíveis de se realizar, sim, foi o que eu disse, mas só fisicamente. Então que coisa estranha é essa, algum palpite? A Sara, sem ironias. Ele enlouqueceu, professor. Ficou doido. Será mesmo, Sara? O texto não confirma isso. Gregor continua pensando, refletindo, consciente do incômodo que causa à família. Inicialmente, ele é incapaz de sair de sua cama e enfrentar o dia. Não consegue mais deixar o quarto não consegue sair para o trabalho não consegue explicar a si mesmo a razão de toda essa mudança. Isso se chama depressão. O pior, para piorar mesmo, é que todos passam a evitar Gregor Samsa, a sentir repulsa por ele, passam a ter nojo dele. Portanto, o que contava mesmo era sua aparência, seu aspecto físico, era isso? Agora é isso? O que é ele então?

 … certa vez pontuei que Cinderela não era uma história de amor, mas de casamento por interesse. E que a pequena sereia escolheu morrer por não suportar encarar o pai e as irmãs após haver fracassado em seu intento. Coisas assim tanto causavam admiração quanto antipatia, eu sei. Aula após aula, a realidade contada sob disfarces ficcionais ia minando as crenças que ainda sustentavam alguns. Eu não tinha o direito de mexer com suas crenças, foi o que me disseram…

Agora, quando me lembro dessas aulas, imagino um daqueles alunos indignados erguendo um braço e quase gritando: “Digressão!”. E me consolo imaginando uma daquelas alunas bem-educadas, de quem me lembra perfeitamente o rosto bonito, alertando-me em particular: “Professor. Toma cuidado com essas digressões.”.

Agora, era um gosto estranho, sem ressentimentos. Recém-formado, lutei muito para conseguir uma aula e outra, pretendendo solidificar, em um futuro próximo, algo parecido com o que seria minha carreira acadêmica. Hoje, é como se eu estivesse morto para tudo isso. Como num instante, na inércia da plasticidade involuntária de nossa mente, como na fração de segundo durante um cochilo, num piscar de olhos, transcorre uma cena inteira e um diálogo entre conhecidos, que absurdamente subverte o tempo que conhecemos aqui fora, tudo o que vivi com minhas aulas durante anos esvanecia-se antes que eu erguesse as pálpebras. Um tempo desaparecido para sempre, entre instantes. Valores evaporando-se, e certo me parecia que fosse assim. Não me valiam mais nada. Era surpreendente (e até assustador) constatar que eu não precisava tanto assim daquilo que por tanto tempo havia procurado.

Mas isso veio depois, imprevisivelmente. Fortemente. Enquanto tudo acontecia, eu seguia com minhas aulas, com orgulho de minhas aulas, contava sobre elas à Marjorie em nossos primeiros encontros, na época em que ainda nos encantávamos de verdade um com o outro. Ela parecia admirada, mas logo me direcionava a outras coisas também interessantes, que são aquelas coisas que-mais-temos quando namoramos, a intimidade, as funções sensoriais, nossos beijos loucos. Nós, homens, nos prendemos muito a isso. Mas temos uma percepção de tempo diferente e desencontrada em relação à das mulheres. Queremos tudo de uma só vez. No fundo, não temos planos estendidos, somos imediatistas. Caçadores atávicos. Muito do que fazemos, sob a tirania de nossos hormônios, visa a algo breve e satisfatório. Os hormônios delas atuam em outro sentido: tentam nos desarmar e a nos convencer a ficar por perto.

Como professor, um jovem professor afinal, que isso tudo eu já colocava em prática desde os primeiros dias de trabalho, essas provocações intelectualizadas e contextualizadas, em grande parte certamente consolidadas antes de meus trinta anos, eu pressentia estar dinamizando um processo que só poderia ajudar a melhorar as condições do mundo civilizado, vencendo o tédio e estimulando a curiosidade. Nem pensava nos outros. Só em meu trabalho. Só em minhas técnicas de interpretação, minha didática própria, e na alegria de passá-las adiante. Tudo isso se desfez em meia hora de reunião, com minha assinatura em um papel que não me interessava e que não li.

Eu era aquele (adolescente, mais ainda) de quem o mundo dependia para continuar a preservação do pensamento claro, da memória crítica, dos valores da honestidade e da ciência, superando a superstição e o medo. Eu era aquele de quem a humanidade dependia, mesmo que infimamente mesmo que anonimamente mesmo que invisivelmente, para mudar a história, para fazer acelerar ou frear o curso perigoso da civilização, que no fundo não passa de uma persistente tentativa de impedir os surtos de barbárie e de perversidades enrustidas.

Minhas aulas, caracterizadas por questionamentos que eu julgava positivos (positivo, o que quer dizer isso afinal?), difamadas por alguns sem que eu soubesse, criticadas por serem digressivas, eram a minha maior contribuição para despertar os valores da intelectualidade e da sensibilidade. Dependendo do que fosse tratado, envolvendo situações trágicas e inconsoláveis, talvez sugerissem intenções suicidas em indivíduos mais sensíveis. Eu não queria isso, como também não me importava que alguém pensasse em se matar. A morte de um ou outro não interrompe o fluxo. Mas não podia prever as consequências de tantas ideias malformadas, depois formadas, depois descartadas, por vezes explosivas, mas sem som. Era um trabalho dentro de outro trabalho, de superfície. Um trabalho sem nome. Que nascia e crescia em mim mesmo. Nem sempre direcionado, admito, e bem pouco pragmático, comparado com o de meus colegas. Mas o fato de eu me orgulhar discretamente de minhas aulas e o entusiasmo que me movia enquanto as administrava eram claramente notados pelos alunos e também por alguns colegas, os menos indiferentes.

Eu sentia e sabia fortemente que era um homem bom. Sem complicações quanto a isso. Sem polêmicas conceituais quanto ao que se entenda por ser bom. Eu apenas me sentia assim, pensava assim sobre mim mesmo, com toda certeza. E quanto mais eu lia, e eu lia quase compulsivamente (quase, eu disse), minha consciência de mundo crescia, admitindo-se serem verdadeiras as informações que chegavam até mim, e minha responsabilidade parecia aumentar naturalmente inercialmente proporcionalmente. Também, quanto mais elevadas essas responsabilidades, maiores se mostravam as chances reais de eu sofrer. Eu próprio me atribuía isso tudo, que não queria ser um medíocre atravessando o tempo. E não me importava de sofrer, se fosse o caso. Sim, esta era então uma das coisas que-eu-mais-tinha: não me importava de sofrer. Qualquer ideal de felicidade me parecia medíocre, insuficiente. Com muito ou pouco sofrimento, o que importava era fazer de minha vida algo produtivo interessante inspirador. Meus ancestrais italianos, camponeses pobres, imigrantes famintos, meus parentes mortos, mesmo os mais antigos, ficariam orgulhosos de mim.

Projeto esvanecendo-se

22. Dos primeiros dias inúteis – sequência

20. Liberdade à força – anterior

Guia de leitura

Imagem: Aldo Balding. Diálogo silencioso (detalhe central).

por

Publicado em

Comentários

Uma resposta para “Projeto esvanecendo-se. Do que eu era”

  1. Avatar de Geovane

    Nossa, quanta transpiração nessa jornada que você mesmo escolheu, apostou e fluiu! Pena eu não ter tido professores cheios de digressões! Eu que li Kafka na faculdade de Letras, aos vinte e poucos anos, diante desse texto perciano – no minimo – inspirador!

Comentar