Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Sonho com Josie na galeria

Ela não reage. Seu rosto parece sem cor. Talvez esteja morta.
Talvez seja apenas uma impressão, devida ao excesso de luz ambiente.

O sonho, Juan. Sentada ao meu colo, sobre minhas pernas, de frente a mim, ela me beija fortemente, ao que correspondo com igual vontade, deliciado com esse privilégio. Estamos sobre uma mureta larga, de superfície lisa, pedra imitando mármore com manchas claras, em meio a uma galeria de lojas ou algum outro tipo de núcleo comercial de estética fria, mas limpa. Pessoas passam calmamente por nós, interessadas em outras mil coisas, e tudo indica que elas não nos veem, não percebem nossa presença. Também sentado na mureta, a dois braços de distância, um homem grisalho, discreto e silencioso, nos observa e aos nossos beijos incontroláveis, porém com mínima curiosidade, alternando o foco de seu olhar entre nosso momento mágico e outra coisa qualquer ao redor, como se tudo fizesse parte de um mesmo contexto sem surpresas, declinando à neutralidade. Entre um beijo e outro, entre mechas soltas dos cabelos dela, que me obstruem a visão, identifico por um ou outro instante o teto muito alto e iluminado desse lugar, talvez todo estruturado em vidro, quase uma película nos separando a todos do céu claro logo acima. Deve ser um dia lindo, penso. Os cabelos dela têm a cor da areia, com mechas escuras irregulares, como se estivessem sujos. Algo me chama a atenção nessa coincidência de tons: as manchas na pedra lisa da mureta, a luminosidade, as manchas nos cabelos dela, algo alternando imagens limpas e sujas, claros e menos claros – mas nunca escuros. Ela tem as pernas bem delineadas sob a pressão da calça justa, camisa um pouco aberta no peito, seios no sutiã, cabelos despenteados por todos os movimentos que nos controlam, mais do que nós a eles. Em algum momento, vejo suas mãos bonitas, uns anéis pequenos mas encantadores, com detalhes coloridos. Também em algum momento, vejo seus pés, tão belos quanto suas mãos, em algum tipo de sandália baixa, com brilhantes. Então eu afasto seu rosto, subitamente preocupado com a situação, que só agora me incomoda, despertando-me uma preocupante ansiedade. Observo sua boca ainda úmida, refletindo o brilho desse ambiente amplo e iluminado. (O homem grisalho ao nosso lado torna a nos inspecionar, rosto impassível, nenhum ar de crítica, apenas nos percebe ali, depois volta-se para umas vitrines ali perto, em frente a nós.) Digo a ela palavras parecidas com estas: Ei, espere. Espere um pouco, escute… Nós estamos em público. Num lugar público. Está ouvindo? Essas pessoas todas, olhe. Veja você mesma. Ela não move a cabeça, apenas espera. É como se algo a imobilizasse. Continua de olhos baixos. Inerte. Só consigo ver suas pálpebras. Fico em dúvida se ela também está olhando minha boca ou algo à altura do meu peito ou, enfim, se está morta – o que, curiosamente e sem nenhum espanto, me parece o mais provável. O homem grisalho ergue um braço, apontando algo na vitrine à frente. Aqueles são os relógios!, com algum sinal de entusiasmo. Eu o considero, intrigado, olho para a vitrine que ele me aponta, mas não consigo identificar nada ali. Volto-me para ela, a garota agora quieta, junto a mim. Veja, você mesma, essas pessoas todas. Está vendo? Ela não reage. Seu rosto parece sem cor. Talvez esteja morta. Talvez seja apenas uma impressão, devida ao excesso de luz ambiente. Nós estamos em público. Ouviu? Finalmente ela move a cabeça, concordando. Ainda sem olhos. Rosto voltado para baixo. Pálpebras de uma morta. Uma jovem morta. Mas eu continuo falando a ela. Me procure. Vamos sair juntos. Outro lugar. Um horário qualquer. Agora ela está de perfil, ainda sentada sobre minhas pernas, braços ao redor de meu pescoço, cabelos presos num rabo de cavalo – mas não entendo como, em que lapso de tempo, ela fez isso, prender os cabelos, se um instante atrás estava morta, e os cabelos, soltos. Rosto de lado, como se avistasse algo a distância, no vértice das galerias, sem olhar para mim, revela sua voz tranquila, e finalmente escuto sua resposta. Não. É imprudente. É arrogante. O quê? Arrogante? Sim. Você acha que eu estou à sua disposição. Mas daqui a pouco não serei mais nada. E você nunca mais vai me ver. As chances se extinguem, não entende? Se extinguem para sempre.

Meus sonhos intrigam o doutor Stabile. É que eu não conto a ele mais do que isso, e ficam faltando peças ao quebra-cabeça. Ele talvez desconfie, experiente, que essa garota se repete em algumas de minhas maravilhosas produções involuntárias em meio ao sono, interrupção inevitável da vigília. As peças que faltam, que sempre faltarão, é a Josie. Sobre quem ninguém, absolutamente ninguém, ninguém mesmo, pode saber.

Projeto esvanecendo-se

31. O que ela faz durante o dia? – sequência

29. Terça à tarde – anterior

Guia de leitura

Imagem: Pablo Picasso. O guitarrista (detalhe). 1910.

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