Office in a Small City por Edward Hopper

Schiavo, Quinlan, Aurora

Nos contos de fadas, podia-se dormir cem anos e voltar do coma.
Dava para esperar pelo príncipe prometido e finalmente por seu beijo – e não era o beijo da morte.

A esperança é a última que morre – porque os médicos ainda não puseram as mãos nela: ou a esperança estaria condicionada a algum aparelho e não morreria nunca. A esperança é uma característica humana, não há como negligenciar isso. Os casos sempre polêmicos de doentes terminais provocam nossa capacidade de julgamento, de argumentação, de senso crítico, o que nem sempre leva a alguma conclusão confortável.

Confortável até demais encontrava-se uma dessas vítimas, a americana Terri Schiavo, inconsciente e inerte durante quinze anos, até que se decidiu por sua morte natural. Se estivesse em estado vegetativo, como atestaram os médicos, claro que não deve ter sofrido por seu destino ou por sua morte virtual. Mas se pudesse compreender o que se passava, então sim, estaria sofrendo de fato, e talvez desejasse a própria morte. Mas quem responde por ela? Os exames. Os laboratórios. Os gráficos.

Há pouco mais de cinco décadas, não se deflagravam tais discussões, pelo menos não com tanta frequência, pois a medicina não dispunha senão de recursos precários para manter um paciente terminal em sobrevida. Era quase impossível sobreviver a um colapso cerebral. Hoje, admitindo-se francamente que o organismo humano assemelha-se a uma máquina, é possível compreender o que o mantém em funcionamento e com isso promover, artificialmente, a continuidade de suas funções. Fazer o quê? Mais um risco para todos nós.

Outra americana, também célebre por razões trágicas, a jovem Karen Ann Quinlan, havia entrado em coma devido a uma overdose. Internada em um hospital de New Jersey, recebeu, após alguns meses, o diagnóstico de que não mais retornaria a um estado cognitivo sapiente. O Comitê de Ética do Hospital St. Clair, criado especialmente para o caso, não sabia ainda como se portar. O juiz da Suprema Corte acreditava que todos os hospitais da América possuíssem um comitê como aquele, o que não existia até então. Desativado o aparelho que mantinha sua respiração, Karen só faleceu nove anos depois, sem nenhuma melhora em seu estado clínico, como previsto anteriormente.

Um caso semelhante, o de Nancy Beth Cruzan, legou-nos o primoroso epitáfio: “Nascida em 20.07.57. Morta em 11.01.83. Em paz em 26.12.90.”.

E qual de nós, quando crianças, não sentiu um frio na espinha ao imaginar a doce princesa Aurora, jovem e bela, adormecida por cem anos devido a uma maldição? Antes disso, observe-se: a roca que a princesa usava para fiar nada mais era que um mecanismo de tempo, cadenciado, imprimindo um ritmo aos seus dias, tecendo, articulando algo para o futuro, cuja demarcação se fizera pelo acidente que culminou com uma picada em seu dedo e o consequente estado de coma. (Será que os contistas previam as agulhas injetáveis e as drogas? As lendas com vampiros preconizavam a propagação da aids? Bem, não exageremos. Uma polêmica por vez.)

Nos contos de fadas, podia-se dormir cem anos e voltar do coma. Dava para esperar pelo príncipe prometido e finalmente por seu beijo – e não era o beijo da morte. O que tem isso com o resto da história? Pense por si mesmo. Afinal, não é você que se diz sempre consciente?

Publicado no jornal A cidade, 17.04.2005, Caderno Especial.

Imagem: Eliseu Visconti. Nu feminino. 1896.

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