Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Quase uma trégua

Eu já tinha parado de falar, consciente de meu humor instável, propenso a declinar rapidamente. Como ela, fiquei olhando a praça, uma coisa e outra, disfarçando minha ansiedade.

Em outra parte da praça, outra divisão do gramado a alguns metros dali, três canos enormes estendidos horizontalmente. Não eram canhões, claro, apenas partes deles – se não era isso, também não sei o que seria e que sentido teria aquilo ali: três cilindros grossos de metal escuro, um deles arranjado sobre os outros dois, preenchendo o vão entre eles, entre a junção de suas circunferências, tudo isso sobre um suporte cúbico maciço apoiado num largo retângulo feito túmulo, de alvenaria clara, algo mais largo e mais comprido que essas tais peças gigantescas, esses tubos sinistros, suspensos a pelo menos dois palmos da relva. Por falta de assunto, apontei esse outro monumento terrivelmente impessoal. Olhe só: nem sei que graça tem ver esses tubos deitados aí. Pensei muito vagamente em quanta gente tinha morrido antes de nós, quanta gente morreu antes de nós, não é? Não, não falei isso. Ficou contido. Cessar fogo. Eu já tinha parado de falar, consciente de meu humor instável, propenso a declinar rapidamente. Como ela, fiquei olhando a praça, uma coisa e outra, disfarçando minha ansiedade. A Josie voltou-se para outro lado, estreitando ligeiramente, muito ligeiramente, os olhos, e eu entendi que ela não queria ficar parada numa conversa dessas.

Uma garotinha de dois ou três anos, pouco mais de quatro palmos de altura, blusinha branca de mangas compridas, estampas coloridas que eu não podia identificar de onde estava, calça azul-escura, foi até os tais tubos e passou a brincar de subir neles. Estava descalça. A altura de cada um, que era seu próprio diâmetro (já que estavam dispostos na horizontal, como se imagina), correspondia à altura da garotinha, e ela precisava esfregar-se toda para escalar suas superfícies lisas até vencê-los com sua natureza empreendedora, sua ociosa determinação. Caberiam umas cinco ou seis dela, deitadas, preenchendo o diâmetro de um daqueles pesados cilindros. Ela se equilibrava sobre o mais alto, chamava orgulhosa a atenção da mãe, que se punha quieta em um banco ali perto ao lado de um homem talvez seu pai, depois se sentava sobre o tubo mais alto com as perninhas abertas como se absurdamente o cavalgasse; descia deles, quase escorregando, tornava a subir, punha-se outra vez de pé sobre o terceiro cilindro, braços abertos de acrobata, confiante e conhecedora dos movimentos próprios da escalada e do potencial de seu corpinho frágil mas vigoroso. Chamava a mãe e uns que passavam, sorria. Olha eu, gente! Se essas armas foram de fato usadas em uma guerra real, valeria a pena ver agora essa garotinha branquela, cabelos negros finos despenteados, na tarde calma de outono, prodigalizando alegrias e vitórias.

Tentei falar com a Josie. Você já veio aqui antes? Já, eu gosto dessa praça, viu? Ela fala mais rápido que eu. Mesmo assim, mais tranquila mais despreocupada mais… jovem. Diante dela, eu me sinto um homem carregado. Carregado com coisas que não são minhas, tal a desagradável impressão que tenho. O que tanto cobramos de nós mesmos? E até quando? Este mesmo momento asfixia o presente, deita o futuro ao passado. Artefatos de engenharia lembrando sofrimentos que não existem mais. Invenções que delinearam e continuam delineando a história horrível da humanidade. Vi um idoso do outro lado dos arbustos, ombros baixos e cabeça calva, sentado quieto observando tudo. O veterano volta para matar saudades. Para matar, canta minha imaginação. Monte Castelo pracinhas expedicionários, será que alguém ainda vive? Tomara que não. É preciso que tudo desapareça, melhor assim. Uma vez comentei com um colega sobre os ventos e as vontades que levam os idosos a uma praça, ele disse que olha isso dá um conto. Como eu detesto quando alguém diz isso. Dá um conto? Que lindo, hein? Nós lutando entre expressões abstratas, sem sangrar, covardes intelectualizados espectros ideológicos reportando horrores. Isso resolve tudo, pelo jeito. A velha do ônibus, esse velho aí, a vida passa diabolicamente em sua mansidão, por esses dias claros, nesta mesma praça entre brisas, fuzilando alguns para sempre, conservando outros para exercitar rugas. Pessoas velhas, com cheiro de velhos, alguns dentre os que conheço poderiam deixar passar, sem ter de apertar-me como apertam, abraçar beijar o rosto, podiam ficar mais em casa, ver menos pessoas, memórias à toa, toda essa gente vai sumindo com o tempo, que faz sumir tudo que aparece, tudo que apareceu um dia. Mas eu, sim, admito, de péssimo, péssimo humor. Isso dá um conto. Pois escreva você e foda-se.

Não tem nada pra me dizer? Me chamou aqui… Tenho sim, Josie. Um vento rápido me fez estreitar os olhos, defensivo. A Josie sentada ali, na base daquela arma odiosa, a imagem toda me incomodava, quase me assustava, ridiculamente. Um pouco nervoso. Triste. Eu sentia outra vez aquela indignação própria de quem não pode mudar as coisas. Toquei a base do cano longo, e isso me punha mais próximo dela. Não era intencional. Mas foi o movimento que eu fiz. Já pensou, Josie? Até 1939, a Primeira Guerra Mundial era chamada a Grande Guerra. Só esse nome. Porque ninguém sabia que iria acontecer uma segunda, entende? Não é horrível? Ela olhou para baixo, depois para mim. Uns fios finos cor de areia se soltavam no ar em volta de seu rosto. Você sabe essas coisas, não é? Fico inconformado de a gente nunca conseguir evitar o que a gente mais quer evitar. E a guerra é uma desgraça em todos os sentidos. Até dentro de cada grupo começam a germinar os sinais do ódio. Patton rivalizava com Montgomery, e Zhukov rivalizava com Koniev. Pequenas guerras dentro de uma guerra maior, que eles mesmos tinham o dever de encerrar. É tudo horrível. Ahn. Sei. Eu adivinhava que a Josie não queria saber de nada daquilo. O que passou, passou. De onde saíram de novo esses problemas que não eram meus? Tenho vergonha de parecer tão idiota. Ela me olha com carinho. Talvez não me ache tão idiota, quem sabe. Ou não se importa com isso, o que é leve generoso tranquilo de sua parte. Mas você tinha outras coisas pra me falar, não é? Que vergonha: exposto assim a essa menina confortavelmente ignorante. Tinha sim, Josie. Tenho sim. Eu gosto muito de você e… Na verdade, você é muito boa pra mim, eu sei. Aquela tela de vidro com sinais digitados não é o melhor lugar pra gente conversar sobre isso. E aqui é melhor, você acha? É. Acho. É. Mas não por ser aqui. É por ser… É pra ouvirmos a voz um do outro, de verdade. Rosto dela de lado. Você só quer terminar comigo, não é? Não precisava fazer isso tudo. Eu não vou te incomodar. Pode ficar tranquilo, viu? Eu nunca incomodo ninguém. Sigo a minha vida. Tô acostumada, viu? Eu só achei que você estava gostando de mim. Pelo menos pode me falar por quê? Virei o rosto também, vi a garotinha guerreira e a cabeça branca do veterano, a atividade e a inércia, precisava parar de me distrair assim. Acusado de digressão. Olha, Josie, sem estender muito, o problema principal é que… eu sou casado. Umas palavras atrás, ela parecia a ponto de chorar; agora, por pouco não sorriu. Ah. Isso? A garotinha de pé sobre os tubos: gente, olha eu! Como assim, isso? Sim, isso é todo o problema, todo ele: isso. Parei de falar. Melhor não seguir explicando o que não, não é preciso repetir. Ela sempre soube e continua sabendo da minha condição. Ahn… Entendo. Tá certo então, lindo. Ergueu-se, ajeitou a alça da bolsa sobre o ombro. Eu entendo sim, viu? Na boa. Mesmo. Tô acostumada… Pareceu de novo a ponto de chorar, e isso me desequilibrou, me tornou tenso solidário empático, emocionado por contágio, quase caí chorando antes dela, que desastre. Mas não era bem isso. Não, não era isso. Ela estava um pouco rouca, só. Fiquei com pena. A Josie, em minha visão: um tanto cigana um pouco selvagem um pouco inocente, de qualquer forma uma garota de aspecto rude mas dócil, e macia. Uma menina como outras, lutando pela vida. Arranhando com força a espessa realidade. Eu tinha que ir. O vento mudou. O tempo acabou. O menino cresceu, o sonho minguou. Mas antes de encerrar de uma vez esse caso maravilhoso e esse encontro constrangedor, eu precisava de algumas garantias. Perguntei a ela se contava sobre nós para a Quiel. Imagina, não! Não conto pra ninguém não, imagina! Isso é uma coisa só minha, só minha. Tá tudo guardado aqui, no meu coração. Você pensou isso? Pensou isso de mim? Sério que você pensou isso de mim, é? Achei que ela fosse chorar de novo, que situação. Eu só queria saber, desculpe. Só isso.

Outro dia, passando por aqui, vi um jovem casal encostado a essa arma. Adolescentes talvez. Alguma coisa antes dos vinte anos. Estavam se beijando. E na semana seguinte, perigosamente, encontrei por um nada uma ex-aluna. Te vi aqui na praça outro dia. Aquela é a sua namorada? Não, eu não podia viver assim, com medo. Mas também não queria viver sem medo. No fim do dia, desse mesmo dia na praça do canhão, a Marjorie quis saber de mim, por hábito. E aí, como foi o seu dia? Tudo bem? Meu dia? Ahn, sim. Tudo bem.

Começou a chover. Quase isso. Uns pingos, mais nada. Nem tempo para qualquer um de nós ali se esconder: parou logo. Céu indeciso. Que linda a chuva imprevista. Que linda também a sua dissolução, num instante de nuvens. Pensei no arrepio de beleza que sempre me despertam as chuvas e tudo que se parece com as chuvas, até mesmo essa ameaça graciosa, interrompida por nada. Os antigos chineses diziam que a neblina era a água com preguiça de chover. Será que ela quer ouvir isso? Não devo. Posso parecer outra vez apaixonado, contando-lhe coisas. Logo aí, outros ventos leves passaram a mão nos cabelos da Josie. Moveram parte deles, perto da testa e dos olhos. Mas eram bem leves mesmo. Só o bastante para fazê-los vivos, seus cabelos, como é comum nesses espaços abertos.

… recordei Mick Jagger cantando que uma tempestade ameaçava sua vida e que, se ele não conseguisse logo algum abrigo, acabaria por esvanecer-se…

Ela me olhou de frente, pálpebras apertadas, íris contidas pela claridade. Hora de ir embora, encerrar a conversa. O que eu devo fazer também, é claro. É claro. Mas outras coisas não são claras sobre meus impulsos imediatos imperativos imprevistos que, como ocorre com o rock’n’roll, atinge nossas vísceras sem passar pelo cérebro. Segurei seu rosto, beijei sua boca. Quietos. Demorei nesse beijo, apesar de superficial. Como se me colasse a ela e à sua boca. Não nos abraçamos. Do jeito que estávamos. Quietos. Outras nuvens, talvez. Céu indeciso, como disse. Soltei-me de sua boca. Carinhoso nervoso lento. Tinha acabado de comentar com ela, pensando em guerras, sobre como a gente nunca consegue evitar o que mais se pretende evitar. Não importa mais. Acusado de digressão – e também de incoerência. Não me deixa assim, lindo. Uma neblina nascida em seus olhos perdia a preguiça. Duas lágrimas: eu acredito nelas. Vou ver um dia de a gente se ver de novo, quer? Um-hum… Você judiou de mim, não faz mais isso não, não tô acostumada assim, você não é só o que é pra mim, viu? Como assim, Josie? Não sou o que… ? Acho que eu te amo. Ah, sim: tenta um tiro certeiro, no final do discurso. Outra vez aquele arrepio preocupante. Deixe estar. Deixe ela estar. Você vai se preocupar com um milhão de coisas de qualquer jeito. Tchau, canhão! Tchau! A garotinha ia embora, mão dada com a mãe. Acenava às partes inertes do canhão, despedindo-se dele – alguém um dia vai ensinar a ela que aquilo não são canhões. Dava adeus à sua parte na manhã tranquila. Leve alegre realizada. Com a mãozinha agitada, disparou um beijo em direção à grande metralhadora, quase um beijo a nós ali.

Por causa do orvalho caído há pouco, eu tinha a sensação de que todos os aromas verdes voltavam a reinar por toda parte, particularmente um cheiro incisivo vindo das acácias. Essa praça é genial depois da chuva, não acha? A Josie sorriu. Você chama tudo de genial, não é? Eu aqui, com uma menina. Na praça genial depois da chuva. É sempre arriscado que eu continue sendo o que sou. Posso te levar, quer? Não, deixa. Vou de ônibus, melhor. Certo.

Certo então. De volta à estaca zero. Square one. Versalhes ameaçado. Esta parte da praça, quadrante sudoeste. Nunca me esquecerei. A negociação de paz fracassara. Um beijo que, ao menos, não se fez violento. (Minhas manias associativas agradariam ao Guilherme, ainda que ele sentisse alguma inveja de mim, se soubesse. Sei que sim, ele é amargo. Mas ninguém sabe, nem vai saber.) A artilharia antiaérea, errando os alvos, deixou que passássemos. O amor venceu a guerra. É isso? Outro chavão arruinado, e você se aproveita? Não é amor, você sabe. Forte atração, para começar. Abrindo margem a manobras perigosas. Você, infiltrado em outro território, em outro reino. Passando para o outro lado, rendido. Um corajoso covarde. Minha guerra continuava, sem vencedores.

Nesse momento eu imaginava, como era de se esperar, que minha razão havia sido suplantada por meu desejo e pela tentação da aventura, do risco da novidade estimulante. Eu ali, num esforço confuso para me livrar da única coisa boa que me acontecia: ela. Mas logo entendi, como até hoje entendo, que foi justamente a minha decantada estimada razão o que soprou minhas atitudes de encontro a mim mesmo. Era a minha razão que perguntava: por que não? Era a minha razão que arquitetava o passo seguinte, enquanto eu estreitava os olhos. Era ela que me empurrava a decidir, de uma maneira ou de outra. E me fazia considerar o que sou, quase me convencendo a fingir que era conduzido por alguma situação externa, uma trama invisível entre os acasos, guiado por deuses e destinos fantasiosos, vamos, não transfira a culpa ao imaginário mal consolidado de tantas mentiras, não há a quem recorrer, não é um golpe dos céus, um presente das nuvens, uma estratégia dos ventos. É o comum da natureza em curso.

Sei, eu não sou inocente. E não quero ser nunca. Pensava apenas em como soava espantosa aquela minha atitude: mesmo depois de tudo que nos dissemos, eu e a Joss Stone, no timing ideal para que desaparecêssemos de vez um para o outro, depois das últimas falas conscientes e assumidas, desenhei um carinho no fiapo de cabelo que lhe caía à testa, segurei seu rosto e beijei sua boca, como numa maldita telenovela de baixa audiência. Isso foi em março.

Tudo passou a ser mais forte e frequente. Eu visitava a Josie pelo menos três vezes-tardes por semana. Ela nunca se opunha, nada de importante a fazer, pelo menos do ponto de vista das obrigações diárias e tarefas que exigissem sair de casa. E sempre essa claridade de janelas cortinas venezianas fechadas, calor atenuado por dois ventiladores portáteis idênticos de plástico pazinhas azul-claras, um que ela deixava na sala, outro no quarto, tudo muito simples ali. Ela se ajeita com agilidade, torcendo-se macia sobre a cama, agora inclinada de lado, pernas ensaiando uma dança em duas dimensões, pega-o pela cintura, um pouco mais de força que o esperado, falta pouco para que ele toque sua nudez com essa ereção em guarda, sentinela involuntária, guardiã natural da permanência da espécie, se não de sua procriação direta, ao menos de sua incontida transcendência individual quase omitida esquecida menosprezada pelo hábito da obediência aos costumes. Ai, eu quero dar assim, eu quero dar assim pra você, vem. A Josie o torna cego surdo e mudo. De novo a encantá-lo com surpresas simples e boas. De lado na cama, bundinha exposta. Mas ela não finge, e esses improvisos são desdobramentos de desejos mais recentes, que já haviam experimentado a presença e a participação ansiosa dele nesse jogo antigo e reciclável, que já o haviam possuído à sua maneira, sutilmente imperiosa e facilmente submissa. Ele observava esses impulsos dela, como se despertassem sob a energia de algum dínamo reativado, alguma coisa em si mesma, movida por algo que a ela pouco lhe importava entender, movimentos decididos num instante, posição conveniente, olhos fechados e pressa em fazer acontecer, em fazer-se acontecer. Ela acontecia. Forçava o presente a adaptar-se a uma sua vontade avulsa. Cada gesto ali, de mobilidade convicta e unhas agarrando lençóis, um produto irracional de sua feminilidade forte, longe das forças fracas que trocamos diariamente entre os semelhantes, com nosso ser reduzido ao mínimo, adequado ao bom funcionamento da hipocrisia que nunca sai de moda, com nosso potencial, não físico, não orgânico, mas espiritualizado pelo erotismo, bem disfarçado pelas boas maneiras e pela preponderância do inquestionável valor do trabalho, como se a ninguém interessasse o que temos de mais valioso, que é o que-mais-temos, nossa capacidade de amar e experimentar prazeres, como se o mundo soubesse muito bem como continuar sem nós, quase nos fazendo crer que não importa nem a nós mesmos tais capacidades brutas ou delicadas, rústicas e maravilhosas.

E pensar que a Josie não existia para além de umas semanas passadas, que ele a conhecia daquela mesinha baixa à entrada do consultório do doutor Stabile, que não a desejara antes, que não a havia procurado nem pretendido depois, e agora se punha rendido, de joelhos, agarrado a seus quadris postos de lado, em posse de uma joia há pouco escondida, e ainda oculta, para todos os efeitos, aos olhos e ao conhecimento de todos os que existem, principalmente aos olhos da Marjorie, que dois meses antes o puxava pela mão rumo à terapia, com objetivos inteiramente diversos, buscando enquadrá-lo outra vez no calendário das obrigações, ele sabe, eu sei. Devo me sentir grato ao inesperado, às imprevistas distrações do destino? Às digressões próprias da vida? (Digressão, Adelaide!) Aos desvios trincando os planos sempre bem traçados pela Marjorie? E quanto à Marjorie? Outra peça do jogo, todos nós. Não, eu não tenho pena dela.

… o escritor gótico Horace Walpole, numa carta de 1754, usou pela primeira vez a palavra serendipity, derivada de uns personagens da literatura persa, três irmãos príncipes de Serendip, que deparavam com incríveis descobertas enquanto procuravam alguma outra coisa. A Joss Stone em minha vida. By serendipity…

Eu não sabia, e não sei ainda o que fazer. O que fazer com ela. Comigo. Difícil decidir, é sempre o que me acontece. Você não sabe tomar decisões, nunca soube. Continua blefando quando se trata disso, pois alguns ainda acreditam em sua capacidade para certas coisas, como se isso se aplicasse a simplesmente tudo. Você deseja essa garota, e justifica com a ciência, seu instinto de preservação. Fácil. Você deseja essa garota, e justifica com argumentos filosóficos, lembrando Berkeley ou Espinoza, a vida não é senão um encontro de corpos, ora, mas que inteligente. Você deseja essa garota, e justifica com sua antiga religião e seus livros sagrados pesados toscos, supondo que seu deus o tenha criado para isso, amém, que se faça a tal vontade. Você deseja essa garota, e recorre a misticismos confusos, destinos premeditados, espiritualidade em curso, energia de um corpo renovando-se na energia de outro corpo, a confusão mística imortal do Oriente minando para sempre a racionalidade do Ocidente. Servindo, é claro, com gratificante conveniência, a inúmeras situações e… intenções. Mas observe: ela também deseja você, e não precisa lançar mão de nenhuma dessas acrobacias intelectuais. Pequena deusa simples. E os deuses são deuses e são o que são porque não se questionam, não filosofam: atuam realizam fazem acontecer o que decidiram, o que declararam a si mesmos, o que desejam que aconteça. Isso é o que aproxima os raros humanos detentores de verdadeiro e efetivo poder, os muito ricos magnatas grandes proprietários líderes nacionais ou corporativos, à parte pertencerem sempre à estirpe dos grandes primatas, dos deuses. Voltando ao que me interessa pessoalmente nessas minhas divagações, o que eu não compreendia ainda era que uma mulher pudesse desejar-me de verdade, por si mesma, por ser ele apenas ele, sem que oferecesse a ela algo em troca, além de sua companhia carinhosa – e a presença ansiosa e tensa de seu corpo de homem.

Nesse dia em que pensei tantas coisas, como se em outros dias eu não pensasse também em outras tantas coisas, cheguei em casa, abri a camisa, deixei a carteira sobre a bancada do escritório, e então, como já me ocorreu em tantas outras vezes, também por motivo nenhum, eu a abri e a desdobrei, à minha querida carteira, notando que lhe faltavam algumas cédulas, uma de cinquenta, outras duas de vinte, talvez uma de cinco, que estavam ali pela manhã. Minhas lembranças recentes tinham se tornado confusas por esses dias, eu sei. Não tinha certeza de certas coisas. E sobre outras, pensava com ambiguidade, como se fosse um filósofo. Fiquei tentando recordar pequenos eventos que envolvessem pagamento em dinheiro, não pelo uso do cartão magnético, algo no dia anterior, e isso me confundiu um pouco mais, porque não estava certo agora se tinha visto aquelas tais cédulas ali, em minha carteira mesmo, na carteira da Marjorie, quando, eventualmente, costumo fuçar às escondidas em busca de trocados para transações pequenas. Enfim, desisti de tentar resgatar, tanto o dinheiro quanto a memória que poderia explicar seu suposto desaparecimento.

Abri o computador, rede social, perfil dela. Fotos, mais uma vez. As mesmas. Examinando detalhes. Ela é mais bonita aqui. Olha essa, outra vez ao lado da Quiel. As duas projetando lábios, simulando um beijo ao observador imaginário – que logo passa a ser o observador real. Nenhuma dessas garotas postaria imagens menos atraentes do que essas. Nada menos. Elas simplesmente selecionam. Produzem refazem adaptam. Um poder. Peitinhos que já foram meus. Decididamente adoráveis. Que são meus ainda. Agora que… Inacreditável. Um adolescente acorda.

Fui à cozinha buscar café. Ocioso diante de um pequeno espetáculo. Lá estava a Quiel, linda. Linda, mas não especial. De quem a Josie me disse algo certa vez, quando elogiei sua beleza – sua, da Josie. Imagina, não sou não. Tenho uma amiga, você não conhece, a Quiel. Ela sim, você ia morrer por ela. Riu um pouco em seguida. Aí estava algo que, num instante, alertava minha memória de frases feitas ao ar, no espaço doméstico por onde transvive a maior parte de nosso tempo em dias, com a repetição dos costumes, propenso a assimilar toda sorte de percepções, nos planos de sua densidade própria, falsamente etérea, fortemente plasmática, tanto que os fonemas ficam gravados como em placas de pedra, embora o que os retém seja a gelatina informe do psiquismo. Pois assim como a convergência evolutiva, no estudo dos seres vivos, atribui características semelhantes a espécies de ramos ancestrais distintos, a Josie, sem saber do que a Marjorie costumava dizer-me em situações dessas e sem que eu jamais lhe houvesse contado algo sobre isso, passou-me praticamente as mesmas palavras, também com um tom característico de quase felicidade, quando, em troca de alguns segundos, torna suspenso seu vínculo comigo e com nossa relação, classificando-me à parte, vendo-me como um espécime apenas, por acaso masculino, homem como os outros, conduzido por hormônios, aberto à poligamia, incentivada por elas mesmas, as mulheres, entre sutilezas e brincadeiras, como a querer agradar-nos a autenticidade dos instintos, como se dissessem: eu sei que você é naturalmente assim, tenho orgulho disso, é assim que eu o desejo, mas não queira exercer na prática essa plenitude, isso que faz de você o que é, esse fundo verdadeiro autêntico legítimo que eu tanto amo. De certa forma, elas contam com alguma expectativa dissimulada quanto a isso, talvez por isso tornem a reavivar novas e leves provocações à luz do dia, entre anedotas e observações irônicas, recordando pontualmente esse nosso potencial sob controle, lembrando-nos de nossas restrições no contexto dos contratos, mas sem nunca nos castrar completamente, brincando e sorrindo, para o bem para todos. E nisso, como na convergência evolutiva e também na sucessão de indivíduos de uma mesma linhagem, todas elas se parecem, como se houvessem se replicado a partir de uma mesma matriz celular ou aprendido com uma mesma professora antiga, transitando entre variadas culturas ou reproduzindo a sabedoria de suas ancestrais comuns, netas e bisnetas da avó e da mãe da Chapeuzinho Vermelho.

Eu não estava com a Josie por causa de sua parcela considerável de beleza física, embora esse atrativo não possa ser negado nem ignorado nem descartado, e a bem da verdade acrescenta às confusões da vida um valor quase imponderável, e pelo qual muitos de nós pagam preços dramáticos. A Quiel e a Josie, um mesmo beijo paralisado, mirando o espectador, amigas quase irmãs. De longa data, cinco ou seis anos. Sei, para quem é jovem, é muita coisa. A Josie não era mesmo de se autovalorizar. Nem mesmo se aproveitava de sua semelhança com a Joss Stone, algo que naturalmente desperta brincadeiras elogiosas entre as pessoas. Mas eu percebi, em pouco tempo, que ela de fato não se fazia muito. Eu sei como eu sou. Eu gosto, eu gosto assim. Não quero ser uma deusa dessas, a gente não precisa. E eu não posso competir com a Quiel. Fiquei olhando as fotos enquanto essas tais memórias me atravessavam o cristalino e o humor vítreo. Nublado por dentro. A Quiel me lembrava alguém, alguma garota mal vislumbrada nas noites da Maga. Não podia ser ela, eu sei. Coincidência demais. E ela não devia fazer parte daquele meio. Quando muito, muito indiretamente, o que a tornaria possível por ali. Mas não, eu não a conhecia. Uma garota bonita como muitas, no padrão aceito pela sociedade tecnológica tanto quanto pelos artistas da cultura greco-romana, como se essas jovens andassem de mãos dadas ao longo do tempo, gêmeas anacrônicas, filhas de muitas famílias, preservando um curso interminável de rostos simétricos, mal delineados em nossos sonhos incertos. A Quiel sim, você ia morrer por ela. Não ia nada. São truques conhecidos, encantos de meia-noite. Se ela não for mais do que isso, meu interesse tende a esvanecer-se espontaneamente. Até me parecia notável, também por causa da disseminação de tais padrões, que não houvesse muito mais pessoas parecidas em todos os lugares. Mas é assim. Uma diversidade absurda, que sempre subestimamos.

Enquanto a Marjorie trabalhava, eu planejava meus encontros com a Josie. Sim, eu era e me sentia um vadio. Inconsequente corrupto infiel… – coisas que dizem. Sabia disso. Primeiro a saber. O caso é que sei lidar com as palavras, e nada disso me afeta. Como todos os que vivem, eu tinha uma história uma trajetória uma cronologia vaga mas verdadeira que permitiam confirmar minha situação atual. Depois de tanto pensar idealizar questionar, o que era eu agora?: um adúltero ansioso, à flor da pele e à luz do dia. Não valia nada saber que não era o primeiro nem o último dessa laia. Todos dizem isso sobre qualquer coisa. Só funciona com gente acomodada, que se justifica e se contenta fácil com semiverdades prontas. Como era possível? Minha natureza só precisava de um estímulo real? – sim, real, não ilusório não abstrato não promissor. Outras impressões momentâneas soavam radicais e perigosas, dependendo de sua duração e intensidade, e eu me flagrava assaltado por impulsos emergentes, como disparados, em contraste com minha lassidão e meu desânimo, pela ação de mecanismos detonadores invisíveis, carregados por dentro, servindo-se de uma pólvora especial a gerar faíscas de uma vontade muito muito muito forte, que fazia de mim um homem ousado e renovado em forças, e era isso o que imprevisivelmente improvavelmente ostensivamente movia meu pássaro fênix abatido a renascer heroico. Venderia a alma ao diabo, feito Fausto, para ter a Josie comigo agora, para enfiar-me nela com toda força. O problema é que o diabo não existe. E portanto eu não precisava vender coisa nenhuma a ninguém. Nada de negociar barganhar pactuar: tudo começava e acabava em mim mesmo. Ao mesmo tempo, não via caso quanto a essas minhas arriscadas decisões. Se ficasse em casa, sem fazer nada, ou se estivesse na cama com a Josie, ao fim da tarde, o mundo voltaria a ser o mesmo, com sua agitação e seu silêncio antigo.

Escrevi um e-mail a ela dizendo que se aprontasse, iria buscá-la, levá-la a algum lugar, sairmos de sua casa um pouco, e ela, maravilhosamente, depois de pedir que eu tomasse muito mas muito cuidado, concordou.

Nesse dia, essa tarde, perto das duas, duas e meia, cheguei para pegá-la. A Josie estava do lado de dentro do condomínio, no primeiro patiozinho, sentada num degrau de alvenaria e como escondida atrás da guarita abandonada, perto do portão da entrada, pernas cruzadas, segurando a bolsa com as duas mãos. Sem buzinar, desacelerei, encostei suave à frente do prédio, ela me viu, foi saindo, abriu e fechou o portãozinho mal esmaltado, clect! plact!, entrou no carro. Oi, lindo. Tava te esperando. Claro que sim, nós dois sabíamos disso, mas ela tem esse jeito de dizer o que é evidente, e ele se encantava com esse tipo de inocência retórica, pontos tão condenados nas aulas de textos. Ela não perguntou antes aonde iriam, só agora. Ele não disse. Queria surpreendê-la. Queria agradá-la. Queria que ela fosse sua namorada. Por causa disso, por não saber sobre seu destino imediato, ela estava vestida de maneira simples, como na maioria das vezes, camiseta escura talvez azul-petróleo onde se lia, ele não entendia por quê, em letras grossas cinzentas claras LONDON BRIDGE, bermuda jeans justa azul-clara desfiada na barra, mocassins cor de madeira crua. Ele a levou a um motel que há muitos anos não frequentava, fingindo-se neutro e prático, conservando sua naturalidade, como se passasse por ali toda semana. Logo que trancou a porta por dentro, viu que ela se distanciava dele no espaço da suíte: foi direto ao banheiro pedindo que ele esperasse só um pouquinho. Ele aproveitou para ir tirando a roupa, para inspecionar uns controles antiquados e acionar o ar-condicionado. Talvez ela tenha trazido algo diferente, que coubesse na bolsa, talvez saia do banheiro em algum vestido sexy e sapatos de salto, mas não, ela tinha se enfiado ali só para urinar e já voltava quase como estava, agora descalça e livre da bermuda jeans, o que já era alguma coisa. Vem sem pressa quase sorrindo até ele. A camiseta lhe desce até as coxas e esconde azul-petróleo london bridge sua calcinha, que ele não viu ainda. Sentá-la ao colo como uma aluna apaixonada excitava todos os instintos de assalto que ele conhecia serem seus, e quase se via sentia atuava qual um professor outra vez. A cama parecia ser deles. Isso foi em abril.

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35. O sumiço de Coco Chanel – próximo

Guia de leitura

Imagem: Praça pouco frequentada. 2018.

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