Office in a Small City por Edward Hopper

Colecionador involuntário

… que acontecem

Trecho de Projeto esvanecendo-se apresentado no sarau da Casa do Poeta em 5 de maio último.

O que me oprimia no momento, entre obscuros impulsos de não querer, era minha antiga e nunca definida relação com os objetos. Mirando sem rumo um ou outro item por ali, senti mais uma vez aquele leve mas recorrente incômodo da posse e da perda. Pensava nas tribos, no que carregavam. Não haver muito a que se apegar, poucos haveres. Um lugar específico, uma casa, um terreno demarcado. Coisas grandes, coisas pequenas. Objetos que amei e perdi. Pessoas que passaram por minha gratidão tardia. Os gibis que se extraviaram depois de brilharem sob meu triste fascínio. Meu relógio e umas moedas. A noite passa por todos.
Toquei uma caneta verde. Depois, um peso de acrílico. Um estilete. Estou sujo de sangue, mas não o bastante. São crises breves, creio. Forças fracas. Sempre me defendi, de uma forma ou de outra, eu me recordo muito bem. Recordo tudo muito bem. Colecionador involuntário. Como se catalogasse o que foi meu: amuleto da sorte, bússola de bolso, lupa de aro negro, miniglobo medieval, figurinhas de astronautas… – itens pontuados em fases distintas, trincados por microtraumas. Associações inevitáveis. No fim, só a minha história é uma história. Porque foi real. Porque eu sei do que foi. Outras são imaginadas, contadas. A outra é imaginada. Nomes-números para não esquecer. Ninguém sabe como foi. Como era a voz de alguém, o que foi dito de fato, que cheiro tinha seu suor, seu hálito. Trajetórias absurdas, individuais ou coletivas, fracassadas ou triunfantes, quase sempre orientadas por horrores. Só a minha história vale a pena, nenhuma outra. As outras nos chegam em código. Tradução da narrativa. Interpretação do registro. E a história-pesadelo da qual o professor Stephen pretendia libertar-se não é senão mais uma memória tenebrosa de armadas vencidas e mínimos momentos de ilusão. Patriotismo e cinzas molhadas. Em minha pequena vida, meus crimes de criança todos prescreveram. Jamais confessados ao padre rouco, em seu nicho escuro. O tempo os cobriu de areia e pedras. Eu não fiz nada.

 

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