Office in a Small City por Edward Hopper

Fantasias arruinadas de propósito

Nem converso com essa gente do mais ou menos.
Eu sempre espero mais.

É difícil fazer uma lista dos piores filmes a que assisti, mesmo porque provavelmente isso ocuparia toda a edição de um jornal como este. Mas logo de minha infância salta-me à memória Pinóquio no espaço. Memória pouca, admito, quase nada me lembra da narrativa, sequer das imagens. O que me vem quase como uma sensação física era uma incômoda percepção de que havia algo errado com aquilo tudo. O Pinóquio que me encantava vivia em uma pequena cidade da Itália, no século 19, num bairro de casas humildes e calçadas irregulares. Por que teriam, o menino de madeira e seu tutor, o Grilo Falante, viajado em missão intergaláctica a bordo de uma espaçonave? O que tinha aquilo a ver com qualquer coisa?

A crescente demanda por entretenimento traz em si própria a decadência. Personagens de desenhos animados e de histórias em quadrinhos muitas vezes deixam seus hábitats gráficos, nos quais se desenvolvem visual e verbalmente, passando a viver aventuras e situações fora de propósito, o que os despersonaliza e confere ao texto uma daquelas incômodas sensações de incoerência que tanto nauseavam Salinger, se alguém não se lembra, aquele que, em nome da verdade, afastou-se radicalmente do círculo dourado que atraía outros escritores de seu tempo.

Assim, a turma da Mônica ou a do Charlie Brown, que experimentam a rotina de bairros de classe média, não poderiam, por exemplo, enfrentar mercenários no deserto ou pilotar jatos de combate, a não ser em sonho. A descontextualização parece ser tão agressiva como quando ouvimos de alguém, de brincadeira ou entre sutilezas, que não passamos de uns limitados mentais. É como se nos dissessem, ao veicularem um desses textos: “Tome isto. Você não esperava muito mesmo, não é? Não seja tão crítico, de qualquer forma é divertido. Afinal, quem é você para contrariar o gosto da maioria?”. Nem converso com essa gente do mais ou menos. Eu sempre espero mais.

Tal e tal gigantesca distribuidora orgulhosamente apresenta, mas não deveria: por vezes é vergonhoso. No filme de animação Shrek – que tragicamente não foi o único –, um ogro solitário, inspirado nas minorias mestiças e socialmente desprovidas de oportunidades (ouça-se com atenção a música gospel em certas cenas), habita uma cabana rústica perto de um pântano. As florestas e castelos são típicos, a geografia local muito bem reproduzida, e já nem é preciso acrescentar que a ação se desenrola na repassada Idade Media. Porém, algo surpreendente ocorre no final, quando todos os bichinhos e bichinhas envolvidos na produção dançam e cantam canções do século XX, e tudo o que se passou até então fica aniquilado, toda a ambientação desmorona, todo o clima psicológico que servia a momentos de ternura esfacela-se numa farra ridícula e tediosa, toda a inspiração que poderia ter nos encantado – como na infância se dava com as legítimas narrativas folclóricas – esfuma-se num instante, lembrando-nos, amargamente, que não havia magia alguma, que apenas nos encontrávamos diante de mais uma empreitada americana para a qual o único valor reconhecível era o preço de nosso ingresso. Transformam os personagens em idiotas, fazem os espectadores de idiotas e, lamentavelmente, tudo acaba em Broadway. No segundo filme da série, a tragédia é maior: eis que os astros da animação, o tal ogro e outros de sua convivência, exibem-se num palco com iluminação elétrica, sonoplastia elaborada e toda sorte de recursos técnicos de que não dispunham em seu mundo mágico medieval. Música e dança em defesa do capitalismo. “Ora, mas o filme é mágico mesmo”, dizem para consolar-me. Não adianta: nenhum tipo de imbecilidade pode consolar-me. Minha memória é seletiva. E eu me lembro de que nunca me consolei com porcarias.

Há obras que de fato nos fazem orgulhosos, por sermos também humanos e criadores, aquelas que gostaríamos de tê-las realizado nós mesmos, e temos vontade de contá-las aos outros com prazer. Do outro lado, meu amigo, estão aquelas que nos inspiram aquele ai lento, longo e abatido (tente fazer, você está sozinho mesmo, ninguém vai ver) de quem perde as esperanças por algum tempo: “Ai…” Nós, o público, declaradamente subestimados, rebaixados ao nível de espectadores imbecilizados, lamentamos as fantasias arruinadas pelos espertos. Não poderiam ao menos ter esperado que se passasse a infância?

Publicado no jornal A cidade, 03.04.2005, Caderno Especial.

Imagem: Walt Disney Productions. Pinóquio. 1940.

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