Office in a Small City por Edward Hopper

Categoria: A seta de Verena

  • Paradoxo do registro e do esquecimento

    Paradoxo do registro e do esquecimento

    Somos todos muito exagerados, não vê? Não temos essa importância toda. É tudo muito rápido. “Você vai escrever sobre nós?” Homens e mulheres, meus colegas de escritório. Todos à minha frente, mais ou menos juntos. Mais ou menos quietos. Mais ou menos tristes. “O quê? Escrever sobre vocês? Por que faria isso?” “Pela eternidade.” “Para…


  • Ácaros e outros micro-organismos

    Ácaros e outros micro-organismos

    Quem o visse quase comovido um minuto atrás não poderia crer que fosse a mesma pessoa. Assim como quem o visse menino, arrastando seu caminhãozinho de madeira. Por bem pouco, o serviço não escapava ao meu controle. Algumas interferências ocasionais e detalhes de meu próprio esquecimento faziam de minha mesa um espaço confuso, de documentos…


  • Camelos, dromedários e o melhor de um mundo pior

    Camelos, dromedários e o melhor de um mundo pior

    Mas não importa a época, nunca podemos escapar a um mundo pior. Nada parece impedir que os governantes exerçam, renovem e aprimorem suas intenções. É preciso que se diga: há escravos e escravos. Não se deve padronizá-los, como a ninguém, afinal eu também fazia parte desse rebanho, registre-se. Há tipos distintos, há asnos descontentes e…


  • Episódios de minha desastrosa inclusão social

    Episódios de minha desastrosa inclusão social

    Mas sempre alguém me chamava de volta ao assunto na mesa que nos servia. Perguntavam o que pensava eu de certas notícias, eu ia mentindo como podia, claro, para contentá-los a todos. Já disse que o teto era baixo e opressivo. O sanitário masculino não dispunha de vitrô ou de qualquer saída de ar, por isso…


  • Se é que eu suportava alguém…

    Se é que eu suportava alguém…

    Nessa época, eu imaginava (quase sem querer, juro) algumas de minhas colegas passeando pelo escritório seminuas. Bem, bem. Coisas de primatas. Eu comecei motivado, entusiasmado, por que não? Atendia clientes ao balcão, dedicando-lhes o máximo de atenção e simpatia, conforme eu mesmo me aguentava. A assistente do doutor Aguiar, aquela que eu disse que poderia…


  • O escravo se diverte

    O escravo se diverte

    Não posso negar que alguma vez também palpitou em mim um tesão de esperança pela mascote do escritório. Mas ela era tão magrinha, enjoadinha, irritadinha… Beethoven acreditava que os seres humanos eram todos iguais. Beethoven! Para estragar tudo, basta citar o senhor Antão de Almeida, que, mesmo tendo sido um crápula mesquinho e oportunista durante…


  • Esses homens…

    Esses homens…

    O doutor Aguiar, notadamente um homem de talento. Podia passar da austeridade ao afeto, com pessoas diferentes, claro, como se acendesse uma lâmpada. Primeiro dia. O doutor Aguiar recebeu-me com tal disposição e tanta cordialidade que eu quase me convenci de seu caráter humanitário. Mas logo pude ver-lhe o fundo da alma, ao observar sua…


  • Eu era um adulto agora

    Eu era um adulto agora

    Não estava apenas vivendo e passando pelos dias, como todos os que trabalhavam comigo. Eu não era um medíocre qualquer, era um medíocre especial: eu tinha um plano. Eu era muito jovem, não foi o que eu disse? E apertava a mão de todo mundo. Meus cabelos eram aparados à americana, e todos podiam ver…


  • Das balanças à justiça: o cego era eu

    Das balanças à justiça: o cego era eu

    O doutor Aguiar apresentou-me aos colegas. Naquela época, eu apertava a mão de todo mundo. Antes de conseguir emprego como escriturário, eu já havia sido escravo numa fábrica de balanças. Uma firma antiga, dessas que ostentam logomarcas comemorativas por 50, 80, 300 anos sem falir, e nas quais se lê algo como: meio século de…


  • A tudo, faltava um algo

    A tudo, faltava um algo

    Quem visse a fachada desse prédio animava-se com uma puta boa impressão. Mas a maioria das empresas é assim, com jardins que nos convencem. Eu trabalhava como escravo num escritório dito de advocacia, mas por onde circulava toda sorte de documentos e barbaridades. Nos primeiros dias, tentava familiarizar-me com a ideia algo incômoda, meio nebulosa,…


  • Eu, um mentiroso crônico

    Eu, um mentiroso crônico

    Perdi oportunidades. Rompi contratos. Sempre fui inoportuno e desastrado, porém, estranhamente, essas perdas nunca me incomodaram muito. Sou o que ninguém quer ser Tornei-me um mentiroso crônico e devo isso a Verena. Foi ela quem fez esclarecer parte de minha aversão pelos meios literários, acadêmicos e outros de rotina não menos aborrecida. “Você é ou…


  • Um último projeto em ruínas

    Um último projeto em ruínas

    Nessa mesma noite, fiquei pensando no fato de ele estar morto e de ter sido alguém, assim ter vivido, viajado, dormido e copulado, como eu. Acendi um cigarro. Arnowitz começava a me impressionar. Logo compreendi que não estava lidando com um homem comum – isto é, não apenas um estudioso de renome, um erudito de…


  • Borboletas com relógio ao fundo

    Borboletas com relógio ao fundo

    O personagem deve manter o leitor dividido entre o riso e a piedade. Bons personagens são os que manipulam e confundem. “Bercedes!”, gritou a velha. “Bercedes!” A moça chegou em seguida, trazendo-lhe o chá. Desde que fora trabalhar naquela casa, Mercedes passara a renunciar a certas Técnicas esgotadas. Truquezinhos baratos. Que tédio. A morte não…


  • Persistência dos labirintos

    Persistência dos labirintos

    Eu finalmente parecia ter encontrado um quarto. O que em princípio me impressionou foram os estranhos ruídos que… Escrevo movido por desesperados ideais de busca. Obstinação, é certo. Há gestos imensos na tentativa de compor cada trecho. Acima disso, a morte e a indiferença humana. Alguém se interessa? Teseu executa o Minotauro, com isso dando…


  • Retomadas e recaídas: de volta ao baile de máscaras

    Retomadas e recaídas: de volta ao baile de máscaras

    Pouco me importava ter nascido no passado ou no futuro, pois estaria sempre no presente. O que, principalmente, realmente importava era vencer a neblina. A neblina. Quando por fim recobrei a calma (eu estava chorando) e ergui os olhos para o mundo, senti que havia alguém, e voltei-me para ver. O menino esquivo e silencioso…


  • Sem rumo, entre rascunhos lamentáveis

    Sem rumo, entre rascunhos lamentáveis

    E minha enxaqueca não ajuda muito. Cefaleia, no caso, fica mais bonito. Mas dói como qualquer palavra. Aqui começa a segunda parte do romance A seta de Verena, Cadernos (I), que revela as tentativas do personagem de escrever algo que o satisfaça como autor, oscilando entre as tentações da técnica e os atrativos da narração…


  • Na cama, depois de tudo

    Na cama, depois de tudo

    Mônica vinha se transformando a cada fim de semana. De certa forma, ela também me preocupava. O pior de tudo era não termos dinheiro, acho. Não tenho certeza. O pior de tudo era o país. O pior era eu. Acho. Fiquei olhando seu rosto inclinado no travesseiro. Gosto de ver sua boca relaxada, entreaberta, mesmo…


  • A bela e as esferas

    A bela e as esferas

    Foi então que, abrindo os olhos, voltando dessa experiência mística, esse meu rápido e estúpido transe, me aconteceu perceber o interesse de uma jovem púbere, de agradável semblante, que a mim observava discretamente de sua mesa, relativamente próxima. Estava com os pais – veja-se se isto são lugares para se levar uma garota dessas numa…


  • Perdemos o fim da missa

    Perdemos o fim da missa

    Eu olhava ao fundo o retrato de Machado de Assis, menino de morro, ascensão social e exemplo que querem os outros como encarnação de seus métodos de controle, este à minha frente, eu considerava, se não finge tanto quanto eu, espera como todos que eu escreva por ele, que eu veja o que ele ainda…


  • “Pois eu faço questão!”

    “Pois eu faço questão!”

    Por essa época, nada me parecia suficiente. Mas eu pressentia estar me aproximando de alguma nova efervescência de meus valores. Dois capítulos sobre isso é mais do que o gosto do leitor médio pode suportar, eu sei. Foi mesmo uma recaída. Arcádio Raposo vai querer cortar tudo. Ora, não. Talvez não. “Somos uma editora.” É…


  • Retrato de meu hábitat quando jovem

    Retrato de meu hábitat quando jovem

    Voltei para casa, mas sem grandes preocupações. No caminho, havia decidido levar adiante meu projeto, mesmo que não pudesse editá-lo. Deve ser algum distúrbio, eu sei. Cheguei menos cansado que o normal, suspirando assim mesmo, olhei com má vontade a pasta com meus textos sobre a escrivaninha (eu pretendia levá-los à editora, mas no último…


  • O Arcádio do Conselho Editorial

    O Arcádio do Conselho Editorial

    Antes de ir até lá, eu havia telefonado para confirmar a entrevista. Ela me deixara esperando por um tempo razoavelmente longo, pois fora o bastante para despertar-me o tédio, enquanto a gravação no aparelho entoava: Há um mundo bem melhor, todo feito pra você…, aquela incrível canção com a qual tentam nos motivar desde as…


  • Passeio (forçado) com Mônica

    Passeio (forçado) com Mônica

    Mônica esperava em meu quarto. Sentada na cama, curvada para a frente, a mão direita apoiando o queixo, os últimos dedos mordiscados entre os dentes, a outra esquecida no colo. Pernas cruzadas, um pé como solto no ar desenhando voltas sobre si mesmo, depois refazendo o giro a girar no sentido contrário. “Então? Vamos?” Entregou-me…


  • Noções de origem

    Noções de origem

    Por uma questão de dignidade, eu queria continuar contando mentiras bem elaboradas, e nunca passar à frente nenhuma mentira que não fosse de minha própria autoria. Sim, isso me animou em muitas fases difíceis da vida. E talvez me motive sempre. Ah, como é bom escrever. Como é bom mentir.


  • Dilemas inofensivos, obsessões horrendas

    Dilemas inofensivos, obsessões horrendas

    Como me irritam pessoas que leem tudo tão rápido. De uma enfiada, elas dizem. Bem-humoradas, contentes com essa capacidade boba. Como já disse, sou lento para ler (ou lerdo, o que melhor servir), devo reprimir uma faísca de inveja dos rápidos. Não sei se é só isso. Você fica cinco anos escrevendo um livro, relendo…


  • Beckett lhe dá as boas-vindas

    Beckett lhe dá as boas-vindas

    Cheguei mesmo a impedir que ela se apoderasse de uns exemplares meio carcomidos, que poderiam destroçar-se de vez – porque eu guardava umas edições muito velhas, de um papel que teria sido branco noutro século, tão antigas que, ao lerem-se alguns de seus parágrafos em voz alta e com alguma boa vontade, seriam capazes de…


  • Consumação mínima

    Consumação mínima

    Ela fez questão de mencionar a última vez que estivemos num restaurante. Um sujeito simpático, meio garçom, meio porteiro, não sei, sorria às pessoas que entravam e saíam, desejando-lhes boa noite, bom apetite, bom isto, bom aquilo. Abriu-nos a porta de vidro e um sorriso que não o impedia de nos radiografar dissimuladamente, tanto quanto…


  • Meu amigo poeta-patriota

    Meu amigo poeta-patriota

    Glauco Pinheiro de Pádua, engenheiro civil, emprego público, Prefeitura Municipal. Poeta por prazer – ou necessidade? Às vezes aparece para trocar ideias, sua tal expressão, na verdade não é uma troca de ideias, ele nunca me dá ideias. De minha parte, evito anunciar-lhe as minhas – não que mereçam qualquer segredo, mas porque normalmente ele…


  • O Arsênio da Editora Circular

    O Arsênio da Editora Circular

    Um arrepio. Conheço essa batida. Lenta, repetida três vezes, como se zombasse de quem está dentro. Outra vez. Digo, mais outras três vezes. Sim, só pode ser. “Bom dia”, diz ele quase cantando. Mas assim: grave, insinuante.


  • Duas linhas, literalmente

    Duas linhas, literalmente

    O jornal dedicou-me duas linhas, literalmente, numa de suas colunas mais estreitas, o tópico cultural. E não que merecesse mais do que isso. Aquele era, sem dúvida, um de meus contos mais execráveis: convencional, descritivo, tinha até uma mensagem. Escrevi muitos contos ruins, e quase todos foram premiados. Por sorte, nem todos foram publicados, e…


  • O fim (e seu avesso)

    O fim (e seu avesso)

    Muitas vezes pensamos que tudo está sob controle. Que estamos a salvo e imunes. Só então é que as coisas de fato acontecem.


  • A seta de Verena. Abertura 2 (Meigos pastores, secretos assassinos)

    A seta de Verena. Abertura 2 (Meigos pastores, secretos assassinos)

    Todo artista compreende um dia, ainda que se deixe classificar como criativo ou mesmo que continue fingindo-se inocente, que nunca foi senão o resultado da convergência de inúmeros outros que ele próprio elegeu. Vivemos entre os invisíveis limites de um mistério que se deixa entrever por espasmos, como cristais guardados só para alguns momentos, nas…


  • A seta de Verena. Abertura 1 (Guardo-o como quero)

    A seta de Verena. Abertura 1 (Guardo-o como quero)

    Você se levantou e não pôde evitar o dia. Você se desvia do espelho que também encontrará em pouco, mas não deve admitir que seu rosto esteja inteiramente arruinado. Afinal, bem perto de onde vive, e por grandes extensões de terra, seus semelhantes compartilham misérias tão mais graves que as suas, embora de outro gênero.…


  • Bom dia, ontem

    Bom dia, ontem

    Quando se olha por uma janela e se observa o mesmo panorama, com os mesmos recortes de telhados, através dos mesmos vidros, por entre a mesma moldura, tanto no dia de ontem como no dia de hoje, o pensamento alonga-se como se espreguiçando, que as coisas todas parecem não passar nunca, e a nossa janela…


  • Os jovens peregrinos e o profeta

    Os jovens peregrinos e o profeta

    Permanecemos atentos às nuvens, no fundo esperando que de fato ocorresse algo diferente e devastador: a chuva. Fez uma noite abafada, opressiva, seca e sem vento. A calma do campo era relaxante, mas não afugentava o tédio. Só à noite, uns grupos ruidosos apresentavam-se no palco. Durante o dia, não tínhamos porcaria nenhuma para fazer,…