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1970
Um nada antes de começar
Estas são histórias que eu gostaria de esquecer. Que gostaria um vento poderoso e hostil as eliminasse para sempre da face do mundo. Que acabassem, com seu peso sinistro, no mais profundo abismo do oceano. Que ardessem furiosamente até reduzirem-se a pó de cinzas irreconhecíveis. E ilegíveis.
Quase todas as pessoas que povoaram aqueles meus dias estão mortas. Ou vivem seus últimos momentos nesta mesma cidade, talvez também em alguma outra parte do mundo, próxima ou distante daqui, o que faz pouca diferença. Se falo nelas hoje (nas pessoas como nas histórias) é porque tudo passou. É porque tudo ruiu. Desapareceu dos lugares. Desmanchou-se no tempo.
No início de nossa vida adulta, um de nossos amigos, que já havia passado pelo serviço militar (conhecido por nós como tiro de guerra), fora humilhado publicamente pelo pai em uma festa de família. Ele seguiu quieto até um canto de jardim e caiu a chorar como uma criança inconsolável, sem que dois de seus primos, eu e mais um amigo próximo conseguíssemos reverter seu surto de sofrimento.
Perto dos dez anos de idade, eu e um vizinho de mesma calçada presenciamos um conflito inesperado, que começou e terminou muito rapidamente. Um menino da vizinhança mostrava a outro menino seu presente de Natal, um foguete de plástico da altura de uma garrafa térmica. Dizia, orgulhoso, que um brinquedo como aquele não era para qualquer um, insinuando que seu interlocutor não era digno de algo tão sofisticado e encantador. (De fato, era incomum que alguém de nosso meio ganhasse de Natal algo tão fascinante e aparentemente caro.) O outro olhou o brinquedo por um instante e passou a chamá-lo de traste ridículo e a ofender o vizinho taxando-o de besta e crianção, embora tivessem a mesma idade. Irritado, o menino do presente novo, ganhado no dia anterior, que havia chegado com um sorrisinho feliz e arrogante à frente da casa do outro, golpeou-o de imediato com o que tinha em mãos, tentando acertar-lhe o alto da testa. O outro defendeu-se por instinto, erguendo um braço à altura da cabeça, o que causou um pequeno dano ao foguetinho prateado, quebrando-lhe um detalhe lateral. Vendo isso, o agressor entrou em surto e pôs-se a desferir golpes rápidos consecutivos na direção do vizinho, chorando e gritando ao mesmo tempo, tomado pelo ódio. “Desgraçado!”, ele berrava com fúria, olhos arregalados, rosto subitamente sanguíneo. “Olha o que você fez, desgraçado!” Como o outro se defendesse com o antebraço, o foguete espatifou-se por completo, caindo em cacos sobre a calçada. Ele próprio destruíra seu lindo brinquedo, até então intacto, ganhado na véspera, entre gritos de ódio e um pranto sofrido e transtornado. Tudo isso ocorreu em menos de cinco minutos.
De posse de tais memórias, exclusivas e particularmente assustadoras, compreendi que a melhor maneira de se observar uma pessoa era presenciando algum de seus momentos de dor intensa, de pranto sentido, de fúria e de ódio.
Muitas situações inusitadas, algumas desesperadoras, outras fatais (como se nunca fosse possível evitar nenhuma delas), sucederam-se ao longo de minha formação involuntária, ao longo do que eu, equivocadamente, intuía serem períodos de encantamento e entusiasmo, até que minha transferência para São Paulo, aos vinte e quatro anos, fora aprovada pela empresa onde trabalhava, pondo fim a um espaço e um tempo carregados de ilusões extintas, erros dramáticos, vergonhas inconfessáveis e sonhos que nunca foram coisa alguma, como um remoinho violento e agressivo se desfaz naturalmente, só porque aquelas correntes de ar, tão palpáveis e fortemente direcionadas, houvessem se cansado de mim.
Minha solidão agora movia-se de um ponto a outro em uma metrópole distante, dinâmica e impiedosa, aparentemente imune ao passado.
1970
Esse número tinha o poder de anunciar uma década de surpreendentes realizações da modernidade, embora fosse o último da década anterior. Falávamos no Concorde, em Fórmula 1, transmissão via satélite, TV em cores, relógios com bateria, calculadoras eletrônicas, trens-bala, e um ano antes os americanos haviam tecnicamente desvirginado a Lua.
Quando nós, Homo sapiens, representados por brancos norte-americanos, descemos na Lua, nós, uma parcela ridiculamente pequena e irrelevante da mesma espécie, já morávamos na casa nova. No primeiro semestre daquele mesmo ano, meus pais conseguiram um financiamento e compraram seu primeiro imóvel, uma casa simples, alinhada diretamente na calçada, sem jardins, sem recuos, basicamente um portão de grade e uma parede contínua interrompida pelo vitrô da sala e pelas venezianas da janela de um quarto.
Nesse quarto, dormíamos os três irmãos e uma tia solteira, Noêmia, que habitava periodicamente a casa de um e outro parente, embora me parecesse que ela teria morado conosco por muitos e muitos anos, uma impressão que se confirmou ao longo do tempo, até que, em outra casa ainda e em outra fase, foi acertado de ela ir morar por outro algum tempo com sua irmã, nossa outra tia, Nora, casada e mãe de quatro filhos. Essa tia solteira morreu após alguns anos de eu nunca mais tê-la visto, em uma casa para idosos, muito emagrecida e desbotada, movendo-se com um andador precário, esquecida de quase tudo o que transcorrera absurdamente em sua vida.
O quintal dessa casa era pequeno, chão de cimento liso, mas nos parecia suficiente para qualquer coisa de brincar, e era ali que jogávamos bola, com uma trave improvisada de um lado só, disputando cobranças de pênaltis e as consequências de cada rebote, que nos permitiam driblar, correr uns passos no espaço exíguo, vivenciar felicidades e agonias próprias do esporte. Na prática, não existia essa trave: era apenas uma demarcação no muro, marcada com giz. Na primeira vez em que a bola caiu na casa da vizinha, ficamos paralisados – eu, dois colegas da vizinhança e um primo. Chamamos por alguém do outro lado, mas arrastou-se um silêncio que pesava no ar. Naquela idade, isso tudo nos parecia muito mais grave que algum incidente internacional. A frente da casa de dona Leonor dava para a primeira rua perpendicular à nossa, de tal forma que era o seu corredor lateral que fazia fundos com nosso muro. Sabíamos, por informações, que era um corredor cimentado, encerado em vermelho, sem qualquer vaso de plantas, nem mesmo algum pequeno móvel, nada que pudesse ser danificado pela queda daquela bola leve, de material ordinário. Depois de uns tantos minutos, um objeto caiu à nossa frente, no cimentado do quintal. A bola havia sido rasgada com algum instrumento cortante, talvez o mais simples, alguma faca de cozinha, e era agora só uma casca de plástico, completamente morta. Uma voz ligeiramente rascante assumiu a autoria do atentado:
“Toda vez que cair coisa aqui, vai ser isso!”
Pedi ao meu pai que comprasse outra bola, ele a trouxe no dia seguinte, produto barato de algum armazém próximo, que ficava no caminho de seu trabalho. A partir daí, combinamos entre nós o máximo de cuidado, nada de bolas atlas, nada de cabecear, qualquer coisa que fizesse evitar um novo incidente. Mas isso não era possível: mais cedo ou mais tarde, uma jogada desastrada arremessava novamente a bola para o território vizinho, que já tínhamos como hostil.
“Ah, que pena!”, fazia voz de dona Leonor, além do muro. “Essa porcaria de bola furou!”
Os restos da bola caíam como do céu.
Meu pai tentou conversar com ela, batendo à sua porta: era apenas uma bola de plástico, não poderia fazer estragos em um corredor tão vazio, sem vasos ou enfeites, e éramos só crianças. Não soubemos qual foi o resultado dessas argumentações, mas meu pai mandou fazer uma cerca de arame trançado, que quase duplicava a altura do muro, e agora brincávamos com mais tranquilidade e alegria. Quando a bola, arremessada acidentalmente para muito alto, tocou o topo da cerca e, tragicamente, em meio a duas possibilidades, escolheu cair para o outro lado, ficamos com a sensação de que aquilo era o fim. Mais uma vez, agora sem o acréscimo de qualquer comentário arrepiante, os restos da bola morta voaram por cima da cerca, caíram tristemente entre nós.
Por causa desses insucessos, nossas tardes terminavam cheias de culpa, impregnadas de silenciosas angústias. Entendíamos que nós mesmos havíamos perdido nossas pequenas chances, por erro nosso, por nosso descuido e imprudência. Eu não teria coragem de pedir ao meu pai que substituísse mais uma bola e outra, já devia ser a quinta que perdíamos, mas ele ficou sabendo e nos proveu com mais uma réplica barata, do mesmo tamanho e marca, que geralmente eram amarelas, vermelhas ou azuis.
“Vão brincar, não liguem pra isso”, ele nos aconselhava. E saía de cena.
Isso durou pouco tempo. Isso, nossas brincadeiras, nosso futebol e nossa convivência com essa vizinha inflexível. Dona Leonor vivia nessa casa com seu marido, um homem submisso e debilitado, e tinha um filho na faixa dos trinta anos, que era motorista de ônibus. Nós o víamos de vez em quando na esquina de casa, um rapaz simpático, de bigode bem aparado, cumprimentando as crianças que encontrava por perto enquanto passava, dizendo coisas engraçadas, e sempre se despedindo desejando que ficássemos com Deus. Ficamos chocados ao saber que ele havia morrido vitimado pela cólera: mordido por um cão raivoso, não procurara ajuda a tempo, subestimando o ferimento leve. Isso era assustador para nós, que deparávamos com cães de rua praticamente todos os dias. Depois dessa tragédia doméstica, seus pais se mudaram de lá, eu nunca soube se para outro bairro ou para outra cidade. O fato é que nunca mais tivemos notícias deles, por isso não fiquei sabendo do que teriam morrido.
No primeiro semestre de meu segundo ano de estudos no bairro novo, que era a quarta e última série do primário, o tanque de oxigênio da Apollo 13 explodiu no espaço. A imprensa do mundo todo acompanhava os esforços dramáticos para trazer de volta os tripulantes, após o cancelamento da missão. Nossa professora, dona Lourdes, pediu a todos nós, minutos antes do fim de uma das aulas, que orássemos pelos astronautas e também nos informou que o papa já fazia isso, encaminhando suas preces a Deus pelo bem-estar e salvamento de nossos representantes no espaço. Ela acrescentou, talvez movida por seu próprio desejo esperançoso e desprovida de informações científicas básicas, que talvez pudéssemos ver a nave no céu a qualquer momento, já que ela estaria retornando à Terra, entraria em órbita e tudo o mais.
“Olha bem, com atenção!”, dona Lourdes nos aconselhou. “Quem sabe vocês podem ser abençoados de ver o foguete voltando.” (Ela dizia foguete, sem saber que o gigantesco Saturno V desmembrava-se nas primeiras horas da decolagem, e agora não havia mais foguete algum.)
Por causa da censura à imprensa e a toda instituição ou pessoa que divulgasse notícias não autorizadas pelo Estado, não imaginávamos que seguiam em curso uma intensa perseguição a dissidentes políticos, prisões sem julgamento, torturas, assassinatos e sumiço de corpos. Nossa maior preocupação era com aqueles três homens no espaço. Assim que deixávamos a escola, tão logo passávamos pelo portão lateral que nos franqueava a rua, sem os entraves visuais das copas das árvores do pátio, erguíamos nossos olhos para o céu azul tentando identificar algum ponto, algum sinal, alguma coisa por lá. Eu pensava sinceramente que Deus poderia ajudar aqueles homens em apuros mesmo que não rezássemos por eles – por que não? E estando Deus no céu, mais próximo da cápsula espacial do que qualquer ser humano na Terra, por que isso lhe seria tão difícil? No fim, tudo correu bem. Os astronautas voltaram inteiros. E nós não vimos nada no céu.
Uma palavra que ouvi muito nesses primeiros anos no bairro novo foi esta, desgraçado, potencializada como uma exclamação terrível, adulterada por prantos histéricos, carregados de ódio. Por algum tempo, as vidas todas naqueles quarteirões e naquela parte do bairro (e talvez em toda parte do mundo) transcorriam tranquilas, previsíveis, com trocas de amenidades e votos rotineiros de boas coisas para o dia, para o tempo próximo, as horas á frente, até que se deflagrasse uma situação qualquer que então me paralisava e me impressionava pelo que me parecia um desfecho absurdo de algo que não se via, que não se mostrava, como se uma coisa não tivesse nenhuma relação com outra.
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