Office in a Small City por Edward Hopper

Um dia, você abriu o jornal…

E para sentir-se melhor, sempre Liana se punha no lugar da pessoa morta. Morria por ela, secretamente.
Depois fugia, reencontrando a si mesma.

“Mas você a subestimava mesmo, não? Olha só, como ela era sensível! Puxa, acho que só as mulheres se entendem afinal. Essa das conchinhas… Estou gostando dela, cada vez mais. E se ela estivesse viva, sério, eu estaria preocupada agora, me contorcendo de ciúmes.”

Danilo sorri com o cantinho da boca, vaidoso. Mas baixa os olhos para sua taça.

“Eu é que só estou contando momentos assim. Ela tinha muita coisa vulgar, ela era vulgar, tinha muita coisa que me constrangia, que me desorientava…”

“Essa foi uma dessas coisas, suponho. E não foi nada vulgar.”

“Uma delícia esse vinho, hein? Como é mesmo o nome? Dá aqui, deixa eu ver.”

“Por que, para você, eu não sou vulgar?”, Liana afastando dele a garrafa. “Me diz.”

Ele toma um gole demorado do vinho, fingindo saboreá-lo. Ignora a garrafa. Sim, ganhar tempo.

“Mmmm… Delicioso. Simplesmente delicioso.”

“Hein? Me diz.”

“Por quê? Ora, porque não é. Porque não. Você sabe disso, sabe que não é.”

Liana se ajeita melhor, sentada sobre as pernas, taça na mão, os peitinhos dançam um pouco com o movimento de ajuste do corpo.

“Não é uma boa resposta. E não venha me dizer que é porque eu sou formada e que eu estudei e…”

“Não, não vou dizer nada, vem cá…”, puxando-a para um beijo. Beijo. Ela não se demora no beijo.

“Você não acreditou nela. É assim que eu entendo. Assim que eu interpreto. Você também só queria…”

Liana já trocou seu interesse no momento íntimo, com vinho, amenidades e carícias, por uma súbita curiosidade interpretativa daquilo tudo. Assume-se a psicóloga que não é, improvisada e sem técnica, o que importa é que algo aí gera uma dúvida sussurrante sobre Danilo, uma neblina sobre a visão dele das coisas, que até então ela facilmente admirava (e administrava), julgando-a clara, consciente, acertada. Liana pensativa agora, como ele não esperava. Como ele não queria. Que só o que ele queria…

“Deixa eu ver se entendi. Ela confiou em você. A ponto de lhe dar aquelas… Enfim, algo muito pessoal dela. Mesmo assim, você pensava nela só como uma gostosinha que poderia acabar na sua mão.”

“Ah, não começa! Mas que exagero”, rindo, quase desenhando um gesto no ar. “Isso tudo foi há tanto tempo…”

“Não, não, tudo bem. Até aí eu consigo entender, na boa. O que se poderia esperar de um jovenzinho estudioso, hesitante, cheio de hormônios, que não conhecia a vida e mal conseguia conversar a contento com uma mulher?”

Danilo deixa escapar um risinho rápido. Ele a acha engraçada bancando a séria, tentando impactá-lo com aquelas palavras bem escolhidas de telenovela.

“Ahah… Mas esse jovenzinho não existe mais, sabia, linda? Tudo bem, o que você quer? Me massacrar?” Abre os braços, peito aberto para a luta, puro e inocente. “Vem cá, vem… Vem me massacrar então… Assim, vem cá…”

“Espera… Espera, me solta. Ai, meu vinho, cuidado! Pronto? Posso continuar?”

“Que chatice. Pode.”

Liana reacomoda-se na posição anterior, sentada sobre as pernas, de frente a ele, que já observa sua nudez mais naturalmente, sem muito interesse.

“Vocês dois, você e a Ana Lúcia, não tiveram mais nada. Não namoraram. Não ficaram juntos, mais nada. Um dia, você abriu o jornal, e ela estava lá. Morta. Quanto tempo depois das conchinhas?”

Ele quase engasga com o vinho.

“Desculpe. É que eu acho engraçado você falar assim. Quanto tempo? Um ano, dois… Não lembro. Depois das conchinhas…”

“Como, não lembra? Você se lembra de tudo. Se lembra de datas, números. Se lembra da página onde leu um conto, um poema. Uma coisa importante assim… Não lembra, não?”

“Não tão importante assim.”

Liana, um pouco mais de vinho, devagar. Não era importante? Por que não? Como não? Só porque estava no passado? Pensa em não pressioná-lo muito, melhor dizendo, fingir que não o pressiona, o que é uma maneira discreta e talvez eficiente de pressioná-lo sim. Não quer discutir, não quer provocar desavenças por pouca coisa. Afinal, conheceram-se há tão pouco tempo, estão se dando tão bem, saboreando um período especial de encantamento de namorados, depois de uma trajetória de relacionamentos equivocados e malsucedidos para cada um, ele com mais de quarenta, ela com mais de trinta, adultos o bastante para sustentar um vinho a dois, um vínculo prazeroso e gratificante de companheirismo. Mas tudo isso, para a boa saúde do casal, depende ainda de se conhecerem um tanto mais. Depende, no momento, de Liana compreender melhor o que de fato ocorreu no passado, o que de fato aconteceu com a pobre da Ana Lúcia, tendo-a conduzido àquele momento sem volta, àquela singularidade, àquela morte trágica.

“Não tão importante”, ele outra vez, como a justificar-se. “Não é o que parece.”

“Não é o que parece?”

“Um-hum…”

“Olha, Danilo, eu percebo que você vive no seu mundo, gosta dele, e eu respeito isso. Mas agora, depois de tudo o que me contou sobre a Ana Lúcia, fica difícil continuar assim, sem um esclarecimento, sem um… Você entende, não é?”

“Sem um o quê? Do que você precisa? Continuar com o quê? Continuar comigo?”

Liana não continua, lembrando a si mesma de não perguntar muito, nem naquele tom, decidindo que não deve prejudicar o momento, essa tarde íntima, enfim. Mas sua curiosidade quase a faz concluir que valerá a pena estragar tudo por uma resposta. Por uma boa resposta, uma pista mais consistente, mais clara que seja. Enquanto Danilo disfarça em silêncio, ela pensa em Ana Lúcia, como se, num instante, essa garota, passeando num sonho, solta das sombras, pudesse dizer-lhe oi e sorrir. Não tem uma imagem dela, e forma uma figura qualquer, alguma atriz adolescente da tevê, do cinema. E para sentir-se melhor, sempre Liana se põe no lugar da pessoa morta. Morre por ela, secretamente, com isso matando-a também por sua vez. Depois foge, reencontrando a si mesma. Não podemos morrer por todos. Os mortos não precisam de nós, por isso temos de nos livrar deles. E isso, para ela, passou a ser sua maneira inventada de matar o medo em si mesma, vivenciando a morte alheia. Mas não, ela não se conforta com explicações pela metade. Não é nada disso. De fato, não sabe por que procede assim em sua mente, em sua morte. Daí a sequência de estratégias lúdicas, experimentadas no escuro, com o batimento acelerado, ainda que imerso na imobilidade do corpo que não responde. Esses pensamentos, que parecem inofensivos, depois de assumidos e retomados por hábito, podem crescer. E assombrar por toda a vida uma pessoa.

“Você sabia que ela levava uma arma na bolsa?”

Taça de vinho, movimento que a faz girar suavemente, Danilo acompanhando o líquido dentro dela – não há nenhuma razão para isso, é um hábito que ele não recorda ao certo de como ou onde adquiriu. Haverá uma razão, ele é que não se lembra?

“Não. Não sabia.”

“Talvez porque… Onde ela morava… Como você disse, um lugar meio desolado…”

“Não sei. Eu tinha pensado, inicialmente, que ficava perto do Armazém Geral, perto da ferrovia. Não me lembrava perfeitamente das ruas e dos caminhos irregulares que tinha tomado para chegar até lá. Mas na verdade ficava menos próximo do Armazém, mais próximo do Abatedouro Municipal, pelo outro lado, o da ponte… Putz, mas por que estou dizendo isso tudo?”

Olhando o vinho claro girando, cristal transparente, brilhos e finos reflexos esperados, previsíveis na penumbra. O que ela quer saber afinal?

“De qualquer forma, era um lugar perigoso. Não era?”

“Não sei. Não propriamente. Não sei se… Bom, mas isso agora…”

Liana olha também o próprio vinho, ergue os olhos, olha a taça dele, o movimento suave, mas ininterrupto, de fazê-la girar sobre si mesma. Danilo a faz girar sobre si mesma.

“Mas… Será que ela levava mesmo a arma na bolsa? Talvez não, claro. Você não podia saber. Talvez ela tenha levado naquele dia, só naquele dia, planejando o que iria fazer.”

“É. Pode ser.”

“Você sabia ou não? Ela levava uma arma na bolsa, com ela?”

“Não sei, já disse. Por que você ainda quer saber sobre ela?”

“Você já me perguntou isso. Eu já respondi.”

“É, eu já disse, sei. Você também disse. Acho que nós dois só estamos perdendo tempo com essa… com isso tudo. Que mais? Não é melhor você ver os recortes, lá em casa?” Abraçou-a pelo ombro, estratégico. “Notícias, mais notícias… Até uma imagem dela, quer?”

“Estou quase aceitando. Quero ver sim. Vamos marcar um dia.”

“Ótimo. Você vai parar de ficar me perguntando coisas, sua detetivinha amadora, intrometida”, pega o nariz dela, rindo. “Vai ver o dia, o ano, tudo que quiser. O nome do delegado, o motel onde ela foi encontrada, o endereço da mãe dela, a roupa…”

“Motel?”

“Motel o quê?”

“Motel, você disse. Você disse que ela foi encontrada num motel?”

“Disse. O que tem?”

“Como, o que tem? Você não tinha me contado isso. Não me contou isso. Eu não sabia.”

“Como não? Contei sim. Você é que não lembra.”

Liana fica em dúvida. Bebe mais vinho, solta os lábios úmidos um do outro, a boca não se fecha sozinha. Em dúvida.

“Será? Eu não tinha entendido assim. Tudo bem. Não tem importância.”

“Contei sim. Bom, mas agora que você vai ver os recortes, os jornais e tudo, não preciso ficar explicando essa coisa toda de novo, não é? O que eu sabia, já te disse: que ela se matou com um tiro na boca, que eu fiquei sabendo pelo jornal antes mesmo do…”

“Na boca? No peito, você disse.”

“No peito. Claro. Disse uma coisa, pensei outra, certo, desculpe. Pensei uma coisa e… Tiro no peito. Ótimo.”

“Que foi, é o vinho? Como ótimo? Mal começou a beber e… Ah, mas espera aí. Espera aí. Tem uma coisa ainda. Tem uma coisa, olha só. Se ela estava num motel, então ela não estava sozinha. Certo? Tinha que ter alguém com ela. Certo?”

“Alguém com ela?”

“Certo?”

“Ah, como é que eu vou saber? Do jeito que ela era doida, do jeito que era imprevisível, podia muito bem ter planejado ir sozinha a um lugar desses só pra…”

“Como você vai saber? Ora, pelo jornal, é claro. Você leu no jornal. Você tem os recortes. Você tem os jornais e…”, a boca outra vez detida em aberto, não podendo ou não querendo se fechar sozinha. “Você tem os jornais, não tem?”

A taça dele gira mais rapidamente, o pouco vinho percorre a borda, quase escapando de uma vez, por qualquer ponto, a qualquer momento.

“E então? Me conta.”

“Tenho, tenho os jornais sim. É que estou cansado de ficar lembrando esses detalhes e essas coisas. Nós viemos aqui pra ter um momento nosso, não é? Pra relaxar e… Depois dessa semana toda e… Não é mesmo?”

“É, está certo. Só me fala isso e pronto, não tocamos mais no assunto, que tal?”

“Isso o quê?”

“Ah!”, faz ela surpresa, quase irritada. “Isso o quê? Você sabe, bobo. Me conta. Anda.”

“Não sei não, minha linda.” Beijo no rosto, na orelha. “Isso o quê? Hum?”

Liana fica inerte, quieta. Beijos em sua orelha e em seu pescoço. Ela não se mexe.

“Danilo, escuta… Olha pra mim. Para com isso, para. Não, escuta… Olha aqui pra mim. Me diz, só me fala uma coisa.”

Ele se afasta de Liana, a contragosto. Suspira, entediado. Ela quer que ele a olhe de frente, tudo bem, vamos lá, pronto, já estou olhando. Que mais?

“Me fala. Era você quem estava com ela. É isso?”

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

19. O aprendiz de feiticeiros – sequência

17. O segredo das conchas – anterior

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Comentários

9 respostas para “Um dia, você abriu o jornal…”

  1. Avatar de Mah

    Parabéns pelo texto e pelo blog.
    Estou seguindo pelo feed.

    beijos,
    Mah | Livro e Coração

  2. Avatar de Filipe Braga Poggi
    Filipe Braga Poggi

    Perce, é muito bom !!!
    Climão de suspense.
    Parabéns!!!

  3. Avatar de Renata Ferri Pavanelo
    Renata Ferri Pavanelo

    Parabéns!!
    Impressionante quando a pessoa tem o dom da “palavra”, e você o tem, maravilhoso seu conto, foi minha primeira vez, mas com certeza voltarei.
    Abraços.
    Renata.

  4. Avatar de vinicius araujo
    vinicius araujo

    COM A SIMPLICIDADE DA ESCRITA VOCÊ CONSEGUE EXPRESSAR OS MAIS NOBRES SENTIMENTOS, PARABÉNS ISSO É MARAVILHOSAMENTE E SIMPLESMENTE UM DOM DE DEUS.
    UM GRANDE ABRAÇO. VINICIUS

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Não exagere, Vinicius. Há muita técnica envolvida nisso. Abraços, que bom que gostou.

  5. Avatar de suelen freitas
    suelen freitas

    Nossa muito instigante, da vontade de fazer parte da história. Muito legal mesmo.

  6. Avatar de V.Cruz

    Olá Polegatto,
    Vim te visitar…muito interessante seu espaço, adoro conto e sua forma de escrever é fascinante e envolvente…vou trazer meu banquinho e minha xicara de café…rs
    Forte abraço, grata pela visita.

  7. Avatar de Weiner Assis Gonçalves
    Weiner Assis Gonçalves

    Quem mais poderia ser?
    Em cada um de seus contos há sempre um novo ponto, sua diversidade é surpreendentemente notável. É um prazer único tê-lo como amigo virtual, quiçá
    a gente a transforma em de fato. Um abração.

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