Office in a Small City por Edward Hopper

Dormindo com as bonecas

Mas também não importa se ela estava mentindo, não nesse caso.
No sonho, a mãe pedia que ela dormisse no armário, junto com as suas velhas bonecas, para escapar da morte.

“Ela uma vez me disse, quase sorrindo, uns olhos cintilantes e talvez mais abertos que o normal: ‘Já pensou que a gente, depois de morrer, nunca mais vai existir?’.”

“Como é?”, Liana erguendo-se um pouco e afofando o travesseiro, apenas por hábito.

“Eu fiquei quieto. Ela não podia estar feliz com aquilo. E não estava mesmo. ‘Já pensou?’, ela me falou. ‘Já’, eu falei. Puxa, quase vejo tudo outra vez, como se ela estivesse aqui. Que coisa, não?”

“Bom, mas ela não está. E aí?”

Um mínimo incômodo de sua parte ao sentir que Danilo se envolve com essas lembranças mais do que anunciava sua expectativa de ouvinte. Tudo bem. São coisas de um passado remoto, que não poderão afetá-la agora. De qualquer forma, tem que pagar um preço se quiser saber. E aí?

“E aí?”

Sentado na cama, ele olha alguma coisa à frente. Qualquer coisa à frente – bastando apenas que essa qualquer coisa à frente esteja em sua linha de visão, entre os primeiros sinais de preguiça mental e a parede mais próxima.

“Sabe, a Ana Lúcia não era dessas que… – como é que eu vou dizer? Não era dessas jovens com tons de infantilidade. Não se fingia de menina inocente, nem de mais amadurecida. Não se fingia de nada. E não era nada parecida com uma ninfeta ou umas coisas assim. Se é que você chegou a pensar nisso, não sei. Seja como for, acho que dificilmente alguém se esqueceria dela, depois de conhecê-la. Ela parecia carregar algum ressentimento, alguma… melancolia, eu acho, por ter deixado a infância. Por ter perdido a infância. Pelo menos, eu sentia assim, entende? O mundo era muito duro pra ela.”

“Um-hum. Já consigo pensar melhor nela. Sei.”

“Ela era bonita, mas parecia não ter certeza disso. Era sensual sim, claro. Sabia de seu poder de atração, sabia muito bem disso. Mas talvez os sofrimentos da vida dela empurrassem para um segundo plano essas coisas como a sua beleza, a vivacidade do seu corpo bem proporcionado, a agradável e inútil simetria do seu rosto…”

“Inútil? Por que… você disse isso?”

“Isso? Não sei. Eu… não sei. Lembro que ela me disse nesse dia que, dali a cem anos, ninguém iria saber de nada. Alguma coisa assim. Que, depois de cem anos, ninguém iria saber de quem transou com quem, de quem traiu quem, ninguém se importaria mais com nada disso, em saber quem foi honesto, quem não foi, quem foi todo disciplinado e quem nunca fez nada na vida… Coisas assim. Isso jogava tudo para um futuro intangível, para além de nós. Não sei por que cem anos, tanto faz. Só uma maneira de dizer, pelo que entendo.”

“É. Talvez menos”, Liana e alguma ironia, quase rindo. Mas não quer rir, não quer amenizar nada. Quer ouvir o resto.

“Então ela disse: ‘Às vezes eu penso, olha aqui…’. Com o dedo indicador, escreveu um número no lençol, mal pressionando o tecido, criando e ao mesmo tempo desfazendo pequenos relevos. Nós dois nus, imagine, sentados na cama. Imagine. ‘Esse é o ano que eu nasci, julho. Sou de câncer, sabia? E esse aqui…’, outro número mal forjado, desfazendo o rascunho anterior, ‘é o ano antes de eu nascer. Quer dizer, minha mãe não tinha dado ainda aquela trepadinha que… Ahahihihih… Não é engraçado? Hein?’ ‘Mais ou menos’, eu falei. ‘Então: nesse ano aqui eu não tinha nascido, eu não existia. O mundo acontecia todo, tudo rolando e rolando e eu… nem aí. Nossa, é tão estranho, não é? Tão absurdo, cara!’ Eu disse: ‘É, é meio estranho sim. Mas deixa eu te dizer uma coisa. Os espíritas dizem que, antes disso…’ E ela: ‘Tudo bem, já sei, já sei, os espíritas e os… os… (Ela não tinha muito vocabulário pra esse tipo de coisa. Nem paciência para ouvir fantasias.) Eles dizem que, dizem que… E mais o quê? E daí? Mas não é isso, você sabe, não é? Não é isso, não é esse o problema. Isso é outra coisa, você sabe, não é? É outra coisa e mais outra coisa. Eu, a Ana, eu aqui, entende? Eu não existia, entendeu? Agora, presta atenção, presta atenção no que eu tô dizendo.’. ‘Certo. Estou ouvindo.’ E ela: ‘Depois que eu morrer, o mundo vai continuar acontecendo com essas desgraceiras, essas porras todas, e eu… Ah, já pensou? Não é interessante?’. Interessante? Para dizer o mínimo. Meio sinistro. E também assustador. Antes, ela tinha dito engraçado. Também, pensando em tudo, até reconfortante afinal. Difícil escolher. O que ela pensava e dizia não era nenhuma novidade, era o óbvio natural. Mas, falando daquele jeito, soava bem estranho mesmo, eu lembro. Num momento desses, imagine, num momento como aquele, nós dois nus, sentados na cama… Sei, sei, eu já disse isso. E ela explicava. ‘E esse ano agora é o ano que alguém não existe ainda. Que alguém ainda vai existir. Já pensou?’ Fiquei pensando. Não queria pensar muito. Me sentia o bobo de sempre. Só comigo mesmo: pagar um motel e ficar ouvindo essas coisas. ‘Olha, não sei se eu alguma vez pensei nisso, assim, desse jeito, mas… Olha, Ana, vem cá, vem. Me abraça, deixa eu te abraçar assim…’ Abracei ela, sentado, curvando meu peito pra frente, beijei o pescoço dela com carinho – e com vontade também, admito. Mas parecia que um medo decorrente dessas indagações começava a crescer dentro dela. E quanto mais esse medo silencioso crescia, mais ela se encantava por ele, mais queria avançar rumo a essas incertezas tóxicas. Ficava meio neutra nessa hora, queria continuar falando e pensando naquilo tudo. Pensando naquilo do ano de nascer e de morrer e tal.”

Liana não sabe o que dizer de imediato. Ou talvez esteja assimilando ainda esses questionamentos desorientados que ela também não esperava ouvir num motel.

“Ela devia ser mesmo estranha.”

“Pois é, mas… Hoje eu não sei, com certeza, se ela era mesmo estranha. Se isso não era apenas… forte demais pra ela. Porque, afinal, o que ela dizia tinha toda razão de ser.”

“É…”, um é meio hesitante. “Faz sentido.”

“Lembro de uns detalhes, um ou outro. ‘Sou de julho. Sou de câncer.’ Não era câncer. Mas isso não faz nenhuma diferença, porque isso não existe, isso de signos. Ela devia ter se confundido ou estava mentindo, porque é difícil alguém se confundir com esse tipo de coisa. É mais fácil esquecer o seu ano de nascimento do que o seu signo no zodíaco. Mas também não importa se ela estava mentindo, não nesse caso.”

“Verdade. Nesse caso, não parece importante. Será?”

“E isso me fez lembrar que eu olhava muito uma figurinha de um álbum colorido que eu tinha quando menino, uma figurinha em especial, só porque nela estava estampado, em letras típicas da série daquela página, o ano do meu nascimento. Uma seção que mostrava invenções e descobertas, então tinha o Fleming e a penicilina, microscópios ao lado dos microbiologistas, pequenas torres de transmissão ao lado de Morse e Marconi, a célebre lampadinha ao lado de Edison… Num cantinho à direita, a bandeira do país do gênio e o ano da invenção. Eu abria aquela página sempre procurando o meu ano.”

“Posso saber que invenção era essa?”

“De alguma forma, essas referências acabam sendo marcantes pra todos nós. São sinais, nomes, nomes de signos, imagens, números que nos identificam, que nos tornam alguém diferente dos mais próximos, porque, é claro, milhões de pessoas têm o mesmo signo e nascem num mesmo ano.”

“O que tem esse álbum? É por isso que você lembrou? Por causa do ano impresso na figurinha?”

“Claro. Tem que é uma coisa importante da infância. Tem que essas coisas assim não parecem importantes, mas acabam sendo as mais importantes, porque voltam. Porque ficam.”

“É…”, Liana quase distraída, provavelmente lembrando, por sua vez, alguma coisa de si mesma. Em si mesma. Chegou a contar a ele que, quando adolescente, imaginara pôr fogo na casa dos pais e suicidar-se em seguida. (Danilo, perplexo: “Você… quis incendiar a sua casa?!” – algo como comparando tais confidências às estranhezas que ouvira de Ana Lúcia. “São coisas diferentes, não percebe? Era só um pensamento de criança.” “Adolescente”, observou ele, irritante.) O que ela não lhe contou foi que, no dia em que o conhecera, sentiu-se feliz, entusiasmada e otimista, mas que, ao cair da noite, teve um mal-estar, com náuseas e simulações de febre, o que lhe tornou difícil uma noite normal de sono. (Na interpretação dela, a verdadeira felicidade tinha um impacto muito forte na vida de alguém, por vezes levando a resultados contraditórios.) Soube que Danilo, na mesma noite em que a conhecera, dormira um sono de pedra – soube por ele mesmo, que nem fazia ideia do que, misteriosamente, acontecera a ela.

“Ela contou também de um sonho que ela teve”, prosseguiu Danilo sobre Ana Lúcia. “Imagine. No sonho, a mãe pedia que ela dormisse no armário, junto com as suas velhas bonecas, para escapar da morte.”

“Uau… Isso então… Nossa, sério, me arrepiou.”

“Bom, voltando: ela não me abraçou. Mas se deixou ficar abraçada. Perguntou, como se falasse com alguém atrás de mim: ‘Você acha que existe alguma coisa depois da morte?’. Olha a minha situação. Olha só a minha situação. Uma pergunta dessas, um lugar desses… ‘Claro, claro que sim. Imagina, nada faria sentido se não fosse assim’, eu falava isso em voz baixa, nem estava pensando direito, enquanto beijava o pescoço, a orelha dela, parte dos cabelos, sentindo aqueles peitinhos gostosos na minha pele. ‘Olha só, como você é linda…’ Eu estava mesmo encantado. Claro que estava. Da mesma forma como alguns minutos atrás. Como se nada houvesse acontecido ainda. Mas eu já tinha experimentado a melhor parte. Tinha ficado por cima dela; aliás, não me saí tão mal, apesar do meu nervosismo. Não queria que ela soubesse de jeito nenhum que era a minha primeira vez. E acho que ela não percebeu mesmo. Eu usei tudo que podia, tudo o que tinha aprendido nas revistas, tudo o que tinha ouvido de uns colegas, mentirosos ou não. Quando me senti dentro dela e me soltei e me tornei mais forte, confiante, no domínio de mim mesmo, vivi com um enorme, um enorme prazer aquela… aquela conquista. Aquele corpo espesso, real, quase duro de tão real. Uma trepada consistente, todo o tempo prazerosa, não me bate assim, ei… Não quero fazer ciúmes, estou só contando…”

“Então conta direito. Trepada consistente…”

“Pode rir. Mas sem bater, certo? O fato é que eu não conseguia parar. Eu não queria parar. Eu não conseguia evitá-la. Não queria evitá-la. Entende?”

“Entendo, claro que sim. Foi assim a nossa primeira noite. Não lembra, não?”

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

4. De falsas princesas – sequência

  2. O sísifo da Rua Rocha – anterior

Imagem: Pablo Picasso. Nu azul. 1902.

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