Office in a Small City por Edward Hopper

Três mulheres, um talismã

Por vezes o que me conta parece poesia.
E me encantam nomes de lugares estranhos e de pessoas tão antigas que até seus fantasmas se volatilizaram.

Olha o que eu achei, olha só o que eu achei, Lice, a primeira com quem esbarro mal ultrapasso correndo o portãozinho frágil e sempre meio emperrado, olha só o que eu achei, ela não se incomoda com o meu riso de banguela, não se importa de eu ser esse menino bobo, último a descobrir o que todos sempre sabem, mesmo assim apoia a vassoura à parede, abaixa-se, deixa eu ver, deixa eu ver o que é, mas desta vez o que trago das minhas vadiagens é esse precioso escudo de ouro maciço, uma peça minúscula, possivelmente descolada de algum anel, Lice e eu examinamos com minúcia a serpente que se acomoda como pode na forma oval contida pela delicada moldura de volutas, vai lá mostrar pra dona Mariana ver se é de alguém que ela sabe, e Lice torna a se unir à vassoura contra o quintal de folhas.

Olha o que eu achei, repito entrando em seu quarto, ela se senta na cama com uma certa tossida que sempre lhe serve a um gesto desse tipo, mas é uma cobra deus me livre, é um amuleto, anuncio com felicidade, então é seu amuleto e você sabe o que é um amuleto?, então guarde muito bem que há de lhe trazer muita sorte, mas vindo dela não parece algo muito convincente, uma vez que se encontra sempre mais próximo o mais importante dos dias, o Juízo Final, que ela também chama Apocalipse, palavra muito mais fascinante, não menos terrível, mas sem dúvida melhor associada aos grandes desmoronamentos e rachaduras abissais por onde todos nós despencaremos em breve, mas todos mesmo, até os jogadores de futebol e as atrizes de cinema, vítimas do gelo e do fogo, já que é tão difícil decidir se será gelo ou se será fogo.

Dona Mariana diz que vai ser logo mas vai demorar muito, muito ainda, mas como você sabe, Lice, se vai demorar ou não?, eu sei, eu só sei, é o que me basta ouvir, agora que tenho um amuleto de ouro e percorro meus dias sem nenhum outro medo e quase tão alegre quanto Lice quando ouve rádio e acompanha as letras que nada me dizem, pois só sei falar e ouvir minha língua, eu certa vez lhe perguntei, Lice, por que você é negra?, ora, eu nasci assim, pareceu-me uma resposta à altura, afinal os que muito dizem que sabem não sabem por que nasceram com essa tal necessidade de sempre dizerem que sabem, Lice me ensina o significado de algumas palavras que pronuncia tão bem quanto seus inúmeros ídolos estrangeiros, ela agora atravessa o segundo grau noturno, vence com facilidade as bimestrais e pretende ser enfermeira ou secretária, se nada der certo, é claro, como grande estrela da música, Lice pensa em cantar de verdade e gravar discos, quem sabe, o sonho acabou, afirmou um dos seus na televisão, semana passada, mas não para ela, felizmente.

E os mortos, os que morreram mil anos atrás?, tenho de esperar que a crise de tosse termine, Deus os trará a todos de volta, ela me revela com voz rouca e também com paciência, é preciso julgá-los como a todos nós, por vezes o que me conta parece poesia, e me encantam nomes de lugares estranhos e de pessoas tão antigas que até seus fantasmas se volatilizaram, mas sei que esse universo fantástico provém da sua bíblia de cabeceira, e antes do papel e da imprensa já estava guardada por arcanjos no último abismo do Céu e, além disso, no idioma oficial de Deus, o português, pois não é a língua do seu livro sagrado e não é um livro sagrado intraduzível?, de sua bíblia e do aroma especial que sobe de suas páginas nasce essa dimensão diáfana e tão inacessível quanto o grande país do rádio de Lice, que não seria o mesmo se estivesse ao alcance dos olhos, se os cantores passassem por nossa calçada a caminho do estúdio e os profetas conferissem os jornais na lateral das bancas, se os roqueiros tivessem nossa língua e Deus a nossa cara, só o que não compreendo é que caibam no mesmo grande dia um terrível cataclismo geral e o julgamento de mil milhões de almas, ela se liberta de outro ciclo de tossidas, o dia do Advento é também o fim dos tempos e já não serão horas nem dias, ora, mas eu deveria ter pensado nisso, a manhã, a tarde e a noite são apenas invenções nossas, não existem fora da Terra, e não nos custará nada perdê-las em troca da eternidade, eu deveria ter pensado nisso, mas era sempre o último a atinar com o óbvio, sempre o último, aliás, em tudo.

Olha o que eu achei, tiro o talismã de sob o travesseiro e o exponho a seus olhos pouco alegres, muito bonito, suspira após um breve sorriso cansado, agora você vai dormir que eu e o seu pai estamos cansados, sua avó já fechou a Bíblia e apagou o abajur, e Lice foi para o quarto dela, você vai ter um sonho bem bonito e me contar amanhã, boa noite, mas quem pode dormir com uma notícia dessas, de que o Grande Último Dia vem chegando e já faz sombra aos calendários, como podem estar preocupados com dinheiro e outras ninharias que os fazem discutir em voz baixa sem saber que eu os escuto, há dois meses não pagamos a Alice, vamos acabar sem ela, Alice que se pronuncie, que eu não vou atrás dela nem tenho como pensar nisso agora, ela tem vergonha de pedir, você não entende, essa gente simples sempre espera de nós que, então que espere, eu dependo da venda do terreno para ao menos poder negociar com o outro banco, o terreno?, mas não era o salão que estava à venda?, o salão ou o terreno, que diferença faz?, eu não sabia sobre o terreno, me diga a verdade, já estou dizendo, pois o terreno está à venda, você está mentindo outra vez, nós estamos perdendo tudo, para de chorar, eu já estou cansado disso, perdendo tudo, tudo o que nós construímos, para com esse drama, eu já tenho muito com que me preocupar sem a sua choradeira inútil, fale mais baixo, ele está dormindo, ocorre-me passar-lhes às mãos imediatamente o meu talismã de ouro maciço, este que durante o dia guardo dentro de uma caixa de fósforos dentro de uma lata de marmelada dentro de uma caixa de sapatos, para que resolvam de uma vez seus problemas com dinheiro, mas penso nisso para o dia seguinte, que agora a neblina escura dentro de mim já vai se alongando até a planície do sono, ainda penso um pouco neles, estranho que nunca falem de como estou perdendo os dentes e ganhando outros, que não falem de eu ser matriculado na escola nem falem do meu futuro, com certeza serei em breve ceifado pelo Juízo.

Vai ser um julgamento e tanto, Lice, tenho certeza que a televisão vai transmitir em todos os canais, bobo, nesse dia a televisão também vai acabar, não tinha pensado nisso, e chega dessa conversa que isso não vai acontecer na nossa vez, entendeu?, você está esquisita hoje, está ou não está?, acho que estou, mas é segredo, é o que ela diz mas é claro que está ansiosa para contar a alguém e é claro que já está me contando que recebeu um bilhete na escola e que está apaixonada, o que eu imagino que seja bom, porque um dos sonhos dela, além desse mais importante, de ser uma grande estrela da música internacional, é ter um namorado.

Mais um dente hoje?, deixa eu ver, mas já está nascendo outro logo atrás, você está mesmo crescendo, rapaz, e pensar que era tão frágil que sua mãe não acreditava que você, tosses mais fortes do que ela tomam-lhe a voz, desta vez ela se deita e parece sufocada, Lice aparece com seu remédio e fica ali até acalmá-la, e eu fico pensando enquanto as observo, eu que tantas vezes tenho fingido ser um menino bom, nem tanto para merecer o Céu, mas pelo menos para escapar ao Inferno, será que minha avó vai viver muito tempo ainda e alcançar o dia tão sonhado?

Dias depois, semanas ou meses depois, como posso saber?, algo acontece, e eu não sei bem o que seja, mas vejo de minha janela, ainda em meu pijama de inverno e olhos remelentos, pelo portãozinho frágil e sempre meio difícil, um homem escoltado, em suas mãos um papel pronto a desdobrar-se, o dia pronto a desdobrar-se, entre os estranhos silêncios que precedem as desgraças, buscam na certa o homem, a esta altura desaparecido, que acaba de selar nosso futuro, pronto a desdobrar-se.

A serpente me lembra o escudo e me lembra o ouro, o talismã de zircão, hoje não mais me dou conta de como o perdi ou em que fase, entre o labirinto de nossas muitas mudanças, esse amuleto que de outra forma reencontro entre alguns dos maravilhosos equívocos que nortearam minha infância, minha voz de menino vadio mostrando a todos o que havia encontrado, meu sorriso banguela que por muito menos esqueceu-se para só tornar a repetir-se com a mesma ternura quando soube, notícia regional que me pôs a despertar de meus papéis, da morte de Lice, minha estrela do país da música e das letras estrangeiras sem saber que o fora, esfaqueada por um namorado, anunciada agora pela rádio que acabava de eternizá-la por trazê-la à minha lembrança, após a canção que justamente a fazia enternecida, essa canção que, como meu antigo sorriso travesso, ela saberia reconhecer.

Penso em mim debruçado na mureta de casa, imagino grandes avalanches e fendas intransponíveis na rua onde moro, no dia em que minha avó livra-se de suas crises asmáticas para sempre, vizinhos entrando e saindo por nosso portãozinho sempre tão frágil, ainda que emperrado, na verdade impotente para conter a invasão do que seja, que dirá do fantástico evento que mesmo a Igreja deixou de apregoar, legando-o a seitas menores, pergunto-me se minha avó terá vislumbrado sinais da imensa catástrofe, se os terá guardado por trás de seus olhos um instante a que se fechasse o livro de sua vida, a menina chamada Mariana, ensinada a cultivar o fim do mundo e do tempo, e ela talvez não previsse que para mim não seriam mais os livros sagrados, que todos os livros que uma vez abri nunca mais se fecharam, e guardaram-se por trás de meus olhos como quando os lia antes de me deitar e os levava abertos minha noite adentro, Lice talvez me compreendesse afinal, ela que também vivia seu plano mágico: que faço minhas todas as palavras, que a morte só virá para mim quando eu não mais puder abrir e fechar livros antes de me deitar e não mais puder guardá-los por trás de meus olhos, levá-los abertos meu país adentro.

O que tenho hoje, enquanto me inclino sobre papéis e me esforço por terminar meus estudos, num tempo sem talismãs, quando ainda busco compreender parte do que fui em função dessas três mulheres, hoje quando creio poder resgatá-las, como quem encontra o clarão de um tesouro e, ao reencontrá-las, de tal maneira torna a vivenciar o mesmo entusiasmo de quem entrava correndo pelo portãozinho gritando outra vez, olhem, olhem só o que eu achei, salvo que tudo se retrai quando observo os olhos quase cegos dessa mulher grisalha que sobrevive ao meu lado, nessa poltrona de onde fixa um vazio qualquer, para quem o mundo já não é senão um vago murmúrio e uma claridade indefinida, essa senhora apática que não compreende nada do que digo.

Lisette Maris em seu endereço de inverno

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Guia de leitura

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23. O final dos contos de fósseis

Imagem: Albrecht Dürer. Mulher veneziana. 1505.

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